Natal: O “longo braço” do trabalho

“Contra a desumanização dos horários de trabalho”, lia-se numa faixa, em grandes letras.

“Os salários são muito baixos, à volta dos 600 euros, mesmo no caso de trabalhadores especializados e já com a experiência de muitos anos. Trabalhamos 24 horas por dia, sábados, domingos e feriados. Os horários de trabalho são alterados diariamente, com acrescida intensificação e desregulação na altura do Natal. Não temos possibilidade de dar acompanhamento aos nossos filhos, não podemos conciliar a desregulação dos horários de trabalho com a nossa vida familiar”, dizia num canal televisivo, num destes dias de Dezembro, uma dirigente do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio e Serviços integrada numa manifestação (cordão humano em frente a um grande centro comercial de Lisboa) dos trabalhadores do comércio.

O objecto da manifestação, como se lia em grandes letras numa faixa, era a “desumanização dos horários de trabalho”.

“Dificuldade de conciliação do aumento e desregulação dos horários de trabalho com a vida familiar”, queixam-se os trabalhadores do comércio. Serão os únicos com razões de queixa, especialmente nesta época do Natal, sobre o quanto têm que protelar a família?

Família. Se há altura do ano em que tal palavra releva, essa é, sem dúvida, a do Natal.

Uma outra, porventura por esta altura ainda mais relevante (e que, aliás, etimológica e simbolicamente, legitima a de “natal”), é a palavra criança.

Depois, não obstante o quanto a ostentação e o feérico dos “natais” do consumismo, o das black fridays e não só, encubram ou dissimulem muito do que ela consubstancia para (ainda) demasiadas pessoas (e necessariamente para famílias e para crianças, mesmo que filhas de quem trabalha), há uma terceira palavra com marcante peso simbólico (e real) neste período do ano: pobreza.

Natal: uma criança nasce de uma família pobre e em condições de extrema pobreza.

A partir da referida manifestação de trabalhadores de há poucos dias, recuamos, neste texto de Natal, mais de 2000 anos para relevar a necessidade de atenção e de reflexão (e acção…) a dar a estas três palavras nos dias de hoje e, mormente, a algo que, concreta e actualmente, as continua a ligar, para além do simbólico e místico de há vinte séculos.

Criança:

O Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou recentemente (26/11/2019) o relatório “Estado da Educação 2018 – edição de 2019”[1].

Se bem que este relatório possa ser muito mais importante quanto a outros domínios da Educação, em si, pelo muito que a Educação se inter-relaciona com a sociedade (e especialmente quanto às crianças), interessa aqui destacar algo que o mesmo evidencia: “o número médio de horas semanais que as crianças portuguesas com menos de 3 anos e com 3 anos ou mais passam em educação e cuidados para a primeira infância e educação pré-escolar (39,1 e 38,5 horas), é dos mais elevados de entre os países da UE28, cuja média semanal de permanência é de 27,4 e 29,5 horas, respectivamente” (pag. 44 do relatório).

Sendo verdade que há outras razões que explicam a excessiva permanência de muitas destas crianças nas creches (com estudadas possíveis repercussões físicas, psíquicas, afectivas, emocionais, familiares e sociais, tanto mais que muitas dessas creches nem sequer reúnem as necessárias condições infraestruturais, organizacionais, de meios e de qualidade básica, para já não dizer educativas, para essas crianças), muito dessa situação decorre da desregulação e sobre-intensificação do trabalho (em ritmo e, sobretudo, em duração) dos pais, porque com irem buscar mais cedo os seus filhos às creches não se conciliam as suas condições de trabalho.

Família:

Sim, ao crescimento do número de horas destas crianças nas creches não subjazem razões essencialmente educativas mas razões de ordem familiar, ainda que por interposição do que consubstancia uma outra palavra que os leitores já perceberam estar aqui a “intrometer-se”: a palavra trabalho.

E, no entanto, ainda não há três meses, em 16/9/2019, foi publicada uma Resolução da Assembleia da Republica que “recomenda ao Governo a adopção de medidas de promoção da conciliação entre a vida profissional, familiar e pessoal”[2].

Mas, cada vez mais normalizada como pressuposto de gestão, como instrumento gestionário “imprescindível” nas empresas privadas e até na administracão pública, é a desregulação e sobre-intensificação do trabalho de muitos trabalhadores que, como pais, os impede de, indo buscá-los mais cedo às creches, mais acompanharem presencialmente os seus filhos, mais com eles (con)viverem.

Cordão humano em Lisboa reclama conciliação dos horários laborais no comércio com vida familiar

A progressiva institucionalização de facto, como regra (e não como excepção), da desregulação e do excesso da duração real (mau grado as restrições legais[3]) do trabalho dos pais, trabalhadores, tende, assim, perversamente, a “normalizar” o excesso de permanência dos filhos, crianças, nas creches.

Mais, quanto a muitas dessas crianças, o seu prolongado “depósito” (utilizo este termo com o maior respeito pelos pais) nas creches é mesmo, algumas vezes, filho da “escravização” dos pais nos locais de trabalho, na medida em que muito do trabalho suplementar que realizam (e que obsta a que vão buscar os seus filhos mais cedo às creches) nem sequer lhes é pago. O que, objectivamente, os transforma em escravos, pois só nesta condição se pode(ia) admitir que o trabalho por conta (e a favor) de outrem não seja remunerado.

De qualquer modo, nestas condições de desregulação da organização e sobre-intensificação do trabalho, objectivamente, o lucro das empresas como entidades empregadoras ou o cumprimento dos “objectivos” administrativos ou de serviços na administração pública assentam, não apenas na exploração dos trabalhadores pais dessas crianças mas, mais perversamente ainda, dadas as possíveis nefastas consequências da excessiva permanência diária destas nas creches, no prejuízo afectivo, emocional, social e eventualmente físico-psíquico dessas próprias crianças.
O que é a profunda negação da “conciliação entre a vida profissional, familiar e pessoal”.

Pobreza:

Segundo dados recentes do Instituto Nacional de Estatística (tratados em 2018, com dados de 2017)[4], o número de trabalhadores pobres, para além de aumentar nos trabalhadores desempregados (de 45,7%% em 2017, para 47,5% em 2018), aumentou nos trabalhadores empregados (de 9,7% em 2017, para 10,8% em 2018).
Ser pobre, mesmo trabalhando, é inadmissível numa democracia. Revela muito do nível de desigualdade(s) que prepondera num país com “contas certas” e “excedentes” e onde há CEO, gestores de topo, a ganharem 160 vezes mais do que o salário médio das empresas que gerem.
Mas revela algo tão ou mais perverso do que isso.
O país onde isso acontece é aquele em que, a par da descida recordista da taxa de desemprego (com que emprego? – impõe-se perguntar… e agir), o trabalho está, ao mesmo tempo, a ser desregulado na organização e duração dos seus tempos. Quer ilegal, quer, até legalmente (por exemplo, ao nível que está a remuneração do trabalho suplementar após as alterações à legislação laboral do Governo do PSD / CDS – Lei 23/2012, de 25 de Junho – e que o anterior e actual Governo do PS não reverteram, o trabalho suplementar é pago praticamente com a mesma retribuição do período normal de trabalho[5], incentivando os empregadores a intensificar a sua utilização “barata”).
A denúncia do referido relatório do CNE sobre o excesso de permanência das crianças nas creches, ao ser um sinal dessa desregulação e sobre-intensificação dos tempos de trabalho dos seus pais, trabalhadores, relaciona-se também pois com este inquérito do INE, na medida em que muitos desses pais trabalhadores, porque ainda que trabalhando o período normal são pobres, são obrigados a trabalhar mais e, assim, a privarem-se de estar mais tempo com os seus filhos, com a sua família.

O “trabalho(inho)” que a pobreza vai fazendo: é-se pobre ainda que se trabalhe mais e trabalha-se mais porque se é pobre.

Como já se percebeu, neste Natal (e não só), afinal, não são apenas aquelas três palavras (Criança, Família, Pobreza) que, desde há vinte séculos, pode ser pertinente invocar. Podem ser pelo menos quatro, com uma outra: Trabalho.

Não surpreende. Porque (socialmente) central na vida das pessoas e da sociedade, o trabalho, em princípio para o bem mas por vezes para o mal, “tem um braço longo”. Que se pode estender (que se estende) à família, às crianças, à pobreza.

E, por mais paradoxal que se entenda, talvez mais ainda no Natal.

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[1]http://www.cnedu.pt/content/edicoes/estado_da_educacao/Estado_da_Educacao2018_web_26nov2019.pdf

[2] Resolução da Assembleia da República n.º 184/2019, de 16/9/2019

[3] O Código do Trabalho contém inerentes disposições legais, incidentes, designadamente, nos domínios da “parentalidade” e da “duração e organização do tempo de trabalho”.

[4] Inquérito às Condições de Vida e de Rendimento

[5] “Futuro do trabalho e qualidade do emprego: trabalhar mais para ganhar menos e ganhar menos para trabalhar mais” – em Le Monde Diplomatique – edição de Agosto/2019 e também em Público, 15/6/2019 – https://www.publico.pt/2019/06/15/economia/opiniao/futuro-trabalho-qualidade-emprego-trabalhar-ganhar-menos-ganhar-menos-trabalhar-1876519

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