As múltiplas discriminações das mulheres: na agricultura e no meio rural

O lugar onde se nasce não é necessariamente determinante, mas marca o nosso percurso de vida. Refiro-me ao lugar na hierarquia social e ao lugar no território. Também o sexo com que se nasce, ou que nos é atribuído à nascença, influencia e muitas vezes condiciona a nossa vida. Nascer mulher, numa aldeia do interior rural do país, condiciona negativamente nos acessos ao ensino, à cultura, à saúde, bem como a outros bens e serviços relativamente às que nascem nas cidades. Nascer e crescer numa aldeia significa também uma maior sujeição a sistemas de controle social, de censura, de opressão e até de violência.

Contudo, se uma mulher nascer numa aldeia em família com recursos, que permitam percurso escolar até ao ensino superior e se fizer esse percurso com determinação, pode superar as diferenças.

A maioria das mulheres do mundo rural onde nasci e me criei não teve essas oportunidades nos seus percursos de vida. Mas ainda hoje, embora as leis do nosso país garantam igualdade de género para todas as pessoas, a efectiva igualdade está longe de ser conseguida.

Nasci numa pequena aldeia do concelho de Vouzela. E é a partir da minha experiência pessoal que passo a escrito algumas reflexões.

Hoje, a minha casa fica a um quilómetro da autoestrada com ligação a outras autoestradas que nos permitem rápida ligação às principais cidades do país, bem como à vizinha Espanha, nomeadamente, Cidade Rodrigo, Salamanca e Madrid.

Quando era criança, e mais tarde jovem, demorava um dia inteiro para chegar a Lisboa. Tinha que fazer mala e ir de véspera; por vezes, ficar para o dia seguinte. Com os meus 14 anos, iniciei a minha militância política que me obrigava a deslocações mensais a Lisboa. Era dirigente nacional da UEC e depois da JCP. Três horas no comboio de Vouzela a Aveiro e outras tantas de Aveiro a Lisboa. Estávamos no tempo da ferrovia.

Ainda em criança, acompanhei com muita atenção as lutas e as formas de organização dos agricultores. Apreciava o funcionamento da Cooperativa Agrícola de Lafões, a forma como os agricultores se organizavam para a gestão colectiva das águas de rega, para abrir um troço de caminho teimosamente bloqueado por um único proprietário que não cedia o seu terreno para a obra e como lutaram contra a apropriação ilegal de uma nascente de água colectiva por um indivíduo influente. Luta esta que uniu o povo, ganhando a causa no tribunal e depois canalizando a água desde a nascente, na serra, até à aldeia.

Sofria com as notícias que chegavam da guerra do ultramar e ainda mais cada vez que um rapaz da aldeia era mobilizado para a guerra. De resto, pouco sabia de política, sabia apenas que o meu pai não simpatizava com o governo a até desligava o rádio que tínhamos na cozinha cada vez que emitia “certos” discursos. As cozinhas das casas agrícolas são importantes espaços de socialização. Na cozinha há lareira, há comida e conversa à roda da mesa ou da lareira.

Antes do 25 de Abril, não havia Serviço Nacional de Saúde e para estudar, além da Escola Primária, as crianças tinham que se deslocar para as cidades mais próximas. A grande maioria ficava pelo caminho. Também não existiam transportes públicos, as pessoas deslocavam-se a pé ou em viatura própria, quando existia, mas eram raras.

As notícias dos familiares que viviam do outro lado da Serra do Caramulo chegavam pelos comerciantes que atravessavam a serra para irem ao mercado de Oliveira de Frades. Paravam em casa dos meus pais para beber um copo que era normalmente acompanhado por um pedaço de broa de milho e presunto ou uma lasca de bacalhau salgado. Na época não abundavam restaurantes nem hotéis e era dever de solidariedade dar comida e abrigo aos viajantes. Esta tradição ainda hoje se mantém muito viva nas aldeias das serras do nosso país.

Nessa altura eu não percebia que havia diferenças de oportunidades entre homens e mulheres. Fui criada numa família onde aparentemente essa questão não se colocava. Todas as pessoas eram tratadas por igual, independentemente do sexo e, além disso, a figura central da família era mulher – a minha avó paterna.

A única diferença era entre nascer homem ou mulher. Eu percebia-a na reação da minha mãe, cada vez que nascia um filho varão. Medo! O medo de parir um filho para morrer na guerra, uma guerra injusta, porque matava os seus filhos e porque pretendia manter ocupados territórios que queriam ser livres e independentes.

Eu era rapariga. Conseguia liderar as lutas na minha escola, conseguia afirmar o meu trabalho até com maior facilidade que os rapazes. Percebia apenas que a maioria dos alunos, rapazes e raparigas, tinha dificuldades em aprender e alguns, muitas dificuldades mesmo. Acontecia principalmente aos filhos de caseiros. Comecei a perceber estas diferenças ainda na escola primária e interrogava-me sobre a razão. As diferenças chegavam a ser tão grandes que, na minha cabeça de criança, inquieta para perceber o mundo, cheguei a pensar que eram de outra “raça”. Só mais tarde percebi que a “raça” era a fome que passavam e o álcool que tomavam logo pela manhã, em vez de leite ou outra bebida que os alimentasse; que a “raça” era a pobreza e a miséria em que viviam. Era a fome que bloqueava a necessária progressão nos estudos. As crianças questionam-se e, por vezes, sendo a complexidade grande, a resposta é difícil. Por isso, seria um problema de “raça”, até porque estávamos em plena época colonial e falava-se de “raças”.

«Caseiros» era o nome atribuído às pessoas que, não tendo terra sua, ou tendo pouca terra, cultivavam terras de outros, em troca de parte da produção anual. Ou seja, a renda era paga em produtos agrícolas produzidos na própria exploração. Normalmente, era «a meias». Todavia, havia casos em que o caseiro ficava apenas com um quarto ou um terço da produção anual. Era vida de miséria!

Na maioria dos casos, as suas filhas eram entregues às famílias dos camponeses mais ricos como criadas de servir e os rapazes iam para Lisboa trabalhar como marçanos ou criados em explorações agrícolas. O termo «criados» significa que eram entregues para trabalhar ainda em tenra idade, logo que saíam da escola primária e alguns/umas mesmo antes de terminar a quarta classe, acabando por ser criados, na acepção da palavra, em casa alheia.

Muitos e muitas ficaram pelo caminho com a escola primária ou nem isso. Lembro-me de que a seleção, que haveria de ser novamente marca para o futuro, se deu no 9º ano de escolaridade. Somos a geração do 25 de Abril. Apanhámos o ensino unificado. Da minha turma do 9º ano apenas 6 alunos passaram. Os restantes ficaram todos retidos. Os que passaram todos prosseguiram estudos e concluíram o ensino superior (3 rapazes e 3 raparigas). Até aqui a diferença não foi de género, foi essencialmente de condição, salvo uma ou outra exceção de ‘malta’ que apreciava mais a brincadeira do que os estudos.

Com um olhar mais atento começamos a identificar mais cedo alguns laivos de separação entre géneros. “Queres sair, porquê? O teu primo é rapaz e fica em casa a ler e a ver televisão. Podes estudar música, mas não vais para a Banda Filarmónica, isso não é para raparigas. Ao baile, vais, mas não danças. À discoteca podes ir, mas à meia noite quero-te em casa.”

As diferenças de género começaram a sentir-se, sobretudo, no início da atividade profissional e quando os filhos começaram a nascer.

Quando os filhos começam a nascer e somos confrontadas com a inexistência de oferta pública de creches, jardins-escola e escolas primárias compatíveis com os nossos horários de trabalho, começa a realidade a cair em nós e as desigualdades de oportunidades entre homens e mulheres a entrar nas nossas vidas.

Aqui chegadas, há três alternativas: Há dinheiro para pagar serviços de apoio à vida familiar; Existe uma família alargada que serve de rede de apoio ou nada disto existe e há que abandonar todas as militâncias e mesmo uma dedicação mais intensa ao trabalho num mundo laboral que é competitivo e estruturalmente organizado em função dos homens. Começam aqui a criar-se condições para a desigualdade salarial e a desigualdade no acesso a lugares de chefia. As mulheres ficam grávidas. Lá vem uma gravidez de risco que obriga a pausas no trabalho, depois tem que parir, levar os filhos à escola, ao médico, enfim, faltar muitas vezes ao trabalho.

É aqui que os problemas se agravam para muitas mulheres. A igualdade de oportunidades é ainda uma miragem no país real, muito mais no interior rural do país onde o controlo social se aperta, a solidão é avassaladora e é “suposto” a mulher “saber ocupar o seu lugar”, em casa, submissa e dedicada.

Mas esta é a dura realidade constatada pelas mulheres que, apesar de tudo, conseguem ter um percurso emancipatório, tirar um curso superior e arranjar trabalho com salário digno.

Mas há outras realidades, há outras mulheres, e em maior número, que começam a ter noção das desigualdades muito mais cedo. Porque nascem em famílias com culturas diferentes ou porque começam a trabalhar mais cedo. Muitas começam ainda em crianças e a serem vítimas de várias explorações. Estas últimas vão para “criadas de servir” ou ficam em casa a trabalhar no campo e, mais tarde, fazem-se agricultoras.

Estas mulheres agricultoras são hoje, mães, filhas e também operárias. Pois, cuidam dos filhos, dos pais já envelhecidos, das terras que cultivam e trabalham ainda na fábrica, porque a agricultura deixou de ser rentável.

“A CEE atirou-nos para as fábricas. Nós fomos criadas na liberdade dos campos, não nos conformamos a estar fechadas dentro de quatro paredes”, dizem algumas apontando o dedo à Política Agrícola Comum (PAC) que entrou nas suas vidas para destruir rendimentos. A pequena agricultura familiar que é fonte de autossustento das famílias tem sido sucessivamente destruída a cada quadro comunitário que passa. Cada um pior que o anterior, com excepção do III Quadro Comunitário de Apoio (2000-2006) nunca a PAC trouxe medidas de apoio à pequena agricultura familiar; pelo contrário, contribui activamente para o seu desaparecimento.

A PAC nunca foi amiga das mulheres do nosso país. A sua transposição para Portugal nunca incluiu medidas para promover uma efectiva igualdade entre homens e mulheres na agricultura. Pelo contrário, foi penalizadora.

Uma das grandes desigualdades introduzidas pela PAC e pelas políticas públicas é no acesso aos direitos sociais.

Na prática as mulheres agricultoras, as da pequena agricultura familiar, ficam fora dos apoios socais. As contribuições para a Segurança Social são muito elevadas, comparativamente com os seus rendimentos e não suportam duas pessoas na mesma exploração; logo, frequentemente quem desconta é o homem e a mulher fica fora do sistema. Isto significa que estas mulheres não têm direito a compensação por baixa médica, a licença de maternidade e outros apoios. Um dia, quando atingirem a idade da reforma, virá outra desigualdade, a da reforma que será mais baixa que a do homem que contribuiu para a Segurança Social e mais baixa que a das mulheres que trabalham noutras actividades económicas.

Esta dura realidade eu pude perceber, durante os 23 anos de trabalho directo no apoio técnico à pequena agricultura familiar no distrito de Viseu, entre 1992 e 2015. Consegui perceber as múltiplas descriminações das mulheres da pequena agricultura familiar, resultantes da sua condição de género potenciadas pelo isolamento, pela solidão, pelo controlo social, pela violência doméstica, pela inexistência de estruturas de apoios que possam informar, apoiar e integrar, pelos baixos rendimentos, por uma dificuldade imensa de atingir a necessária emancipação.

Um dos últimos trabalhos de campo, que levei a efeito no concelho de São Pedro do Sul, foi justamente uma visita técnica a uma jovem agricultura instalada em plena Serra da Gralheira. Pensei no momento: «esta mulher, quando nascer o primeiro filho terá que abandonar esta terra». Fechou a escola, o posto dos correios, as urgências nos centros de saúde e até a Junta de Freguesia, último reduto de serviços públicos nos territórios rurais, acabou por fechar com a última reorganização administrativa, a régua e esquadro.

Confrontada com esta realidade, procurei lançar mão de instrumentos e de políticas que pudessem ser usadas em favor duma alteração de paradigma. Era responsável pelos Serviços Locais do Ministério da Agricultura, dirigente da Associação de Desenvolvimento Rural de Lafões (ADRL) e tinha intervenção na política local, o que me permitiu uma melhor ligação à população local e um maior conhecimento dos problemas. Talvez por ser mulher, tanto na ADRL como nos Serviços Agrícolas, era abordada por muitas mulheres que me falavam da sua situação de isolamento e de outros problemas concretos.

Foi nesse quadro que começámos a procurar articular a nossa ação com outras organizações com experiência em trabalho concreto com mulheres e possibilidades de candidaturas a programas que pudessem financiar os projectos que considerámos necessários para melhorar a qualidade de vida das mulheres agricultoras e rurais. Aqui surgiram os primeiros contactos com a UMAR e com a Associação de Mulheres Agricultoras e Rurais Portuguesas (MARP). Nessa ocasião, a UMAR tinha a sua intervenção mais focada nos problemas das mulheres das grandes cidades e a MARP, apesar de ser uma organização de mulheres agricultoras, não se definia como uma organização feminista.

As parcerias acabaram por se estabelecer com a Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local (ANIMAR), o Instituto das Comunidades Educativas (ICE), liderado por Rui d’Espiney e com a ACERT para dar corpo a uma candidatura à Iniciativa Comunitária EQUAL na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Vimos assim aprovado o projecto “Iguais num rural diferente” que nos permitiu aprofundar o diagnóstico nos territórios de intervenção do projecto e, com a participação da população, desenhar soluções adequadas às necessidades identificadas.

Os problemas mais graves foram identificados na Zona Industrial de Campia, concelho de Vouzela, onde existia uma fábrica que dava emprego a mais de cem mulheres que trabalhavam por turnos. O trabalho por turnos era completamente incompatível com os horários das escolas e dos jardins-escola e creches existentes. Muitas não tinham a quem confiar os seus filhos durante o horário de trabalho. Problemas de violência doméstica, associada a alcoolismo, impedia-as de deixar os filhos em casa.

No decurso de um processo participativo, baseado em metodologias participativas inovadoras, que recorriam a técnicas de teatro, tornou-se evidente a necessidade de construir um espaço dedicado às crianças que funcionasse em horário compatível com os horários das operárias e agricultoras.

Foi elaborado também em processo participativo um projecto educativo e um projecto pedagógico para esse espaço. O Conselho Directivo dos Baldios de Rebordinho da freguesia de Campia cedeu-nos um edifício para aí ser instalado o espaço para as crianças. Foi desenhado um projecto de arquitetura inovador, com climatização sustentável.

Este espaço não poderia ser mais uma creche mas sim um espaço polivalente e flexível, de modo a funcionar não só como creche, mas também como jardim-escola, onde, durante a noite, possam ficar crianças e jovens, enquanto as suas mães trabalham em turnos nocturnos. Por isso, o nome deveria corresponder a este modelo inovador. Passou a chamar-se Centro de Apoio ao Desenvolvimento da Infância (CADI). O projecto teve bom acolhimento por parte das autarquias locais e por parte dos empresários da Zona Industrial, onde se veio a construir o CADI. A entidade gestora do EQUAL aprovou a candidatura para financiamento da obra.

Sonhámos, projectámos e construímos a obra. Mas não conseguimos que o CADI viesse a funcionar. Falharam os apoios da Segurança Social. Foi-nos negado um acordo atípico para que este espaço funcionasse, de acordo com as necessidades das mães.

Este espaço está a funcionar como uma creche normal, gerida pela Câmara Municipal de Vouzela.

Este é o exemplo de como a cidadania organizada consegue produzir inovação e como ela aborta pelo conservadorismo do Estado.

Durante este mesmo período de intensa actividade na ADRL e nos Serviços Locais do Ministério da Agricultura, participei com seis mulheres agricultoras na organização de um processo de formação em produção e transformação do linho que culminou com a criação de uma cooperativa de artesanato. Era uma cooperativa de mulheres. Este processo só foi possível graças a uma parceria informal entre a autarquia local, a dirigente do Centro de Emprego Local, os Serviços Locais do Ministério da Agricultura e a ADRL. Foi graças a este juntar de vontades que se conseguiu vencer as barreiras burocráticas e levar por diante todo o processo.

Este grupo de mulheres que chegou com êxito ao final de cerca de ano e meio de formação (produção, tecelagem e bordados) decidiu que queria continuar a trabalhar em conjunto e fora de casa. Este trabalho permitia a necessária articulação com a exploração agrícola e permitia a sua emancipação. Foi essa determinação que as levou a constituir a cooperativa.

Com o apoio da ADRL participaram em feiras e outros eventos por todo o país para promover os seus produtos. Chegaram a ir à Bélgica participar numa mostra de artesanato. Começaram a participar em iniciativas feministas no âmbito da Marcha Mundial de Mulheres.

Este caminho emancipatório começou a ser falatório no café da aldeia e os seus companheiros começaram a sofrer a pressão social dos outros homens: “Deixas a tua mulher dormir fora de casa? Sabes lá onde e com quem?”. Algumas não resistiram a esta pressão e começaram a abandonar a cooperativa.

As mais determinadas resistiram e não baixaram os braços. Mas alterações nas políticas públicas acabariam por deitar abaixo a cooperativa. O artesanato em linho não é suficientemente valorizado no mercado. A cooperativa conseguia boa parte do seu financiamento através da participação das suas trabalhadoras/cooperantes como formadoras de outras mulheres em iniciativas de outras organizações. De repente, há alterações no processo formativo, a formação passa a ser demasiado formatada e deixa de haver flexibilidade necessária para processos de formação, à medida das necessidades de cada público e de cada território.

Em pouco tempo a cooperativa acaba por encerrar com receio de falência.

Contudo, o papel das mulheres nas tradicionais famílias camponesas é muito mais importante e complexo do que pode parecer num primeiro olhar.

A subalternização da mulher está tão enraizada na sociedade que as mulheres camponesas, apesar de desempenharem papéis centrais na gestão da exploração agrícola e na educação dos filhos, habituaram-se a esconder a sua capacidade de liderança, dando a entender que cabia ao homem essa tarefa.

Durante o período de tempo em que trabalhei nos serviços locais do Ministério da Agricultura, convivi com vários casos de mulheres inteligentes que indicavam o cônjugue como líder da casa, como o mais conhecedor da exploração agrícola e da sua gestão, procurando, claramente, esconder as suas capacidades e o verdadeiro papel na família. Mas, ao fim de pouco tempo de conversa, ficava claro na minha cabeça quem verdadeiramente liderava lá em casa.

Esta é cultura enraizada entre as famílias camponesas. Contudo, a centralidade da mulher camponesa na gestão da casa e da exploração agrícola e na educação dos filhos e dos netos, foi-se perdendo à medida que um conjunto se serviços e de bens passaram a ser adquiridos no mercado.

A comunicação social local foi também instrumento que usámos na luta pela emancipação das mulheres e na defesa dos direitos das crianças. O jornal Gazeta da Beira, único jornal independente e plural da região, e a Rádio Vouzela abriram espaço para diversas publicações e programas sobre igualdade de género. Foi um período de trabalho intenso e muito rico.

Mas, apesar disso, a grande verdade é que “está tudo por fazer” para promover a efectiva igualdade de género nos meios rurais.

Precisamos urgentemente de reivindicar um conjunto de medidas dirigidas à promoção da igualdade de género entre as mulheres agricultoras e rurais que incluam medidas de promoção da conciliação entre a vida familiar e o trabalho.

É urgente criar um Estatuto das Mulheres Agricultoras, à semelhança do que já existe noutros países, que inclua medidas que possam contribuir para alterar as condições de vida das mulheres agricultoras, nomeadamente, alterar as condições de acesso à Segurança Social, através da criação de um regime específico e adequado à realidade concreta da pequena agricultura familiar; preferência nos direitos às ajudas directas da PAC, no caso de divórcio e partilha da exploração; medidas de descriminação positiva em candidatura de projectos a fundos comunitários; acesso a um programa de formação adaptado às suas necessidades; incentivos à constituição de organizações de mulheres agricultoras.

A par de um conjunto de medidas a incluir na PAC, há que articular com outras políticas públicas, nomeadamente, a saúde, a educação, o acesso à cultura e ao ensino. Criar ou reforçar/adaptar serviços de apoio às famílias, nomeadamente, de apoio à infância e aos idosos adaptados ao tipo de povoamento existente no meio rural, normalmente disperso.

É urgente alargar o trabalho da UMAR, como está a ser feito na região de Lafões por iniciativa de Manuela Tavares, a todo o território nacional de forma a dar voz a todas as mulheres agricultoras e rurais, vítimas silenciosas de múltiplas discriminações.


[Texto originalmente publicado em “As vozes que se entrecruzam”, edição UMAR/Proj. Memória e Feminismos: Múltiplas Discriminações II]

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