A liberdade, a democracia, ficariam seriamente doentes sem um Serviço Nacional de Saúde (SNS), que resultou de uma extraordinária conquista do 25 de Abril, a assinalar 40 anos (1979 – 2019). Mas desde então, a direita (PSD e CDS) que votou no Parlamento contra o projeto-lei das Bases Gerais do SNS, só aprovado com os votos do PS, PCP e UDP, nunca desistiu de o adulterar. Mesmo em governos de bloco central, durante várias décadas, as politicas seguidas foram no sentido de contribuir para fragilizar e descaraterizar o SNS, através da lógica de transformar a Saúde num chorudo negócio, facilitado pela Lei de Bases de 1990, que abriria decididamente caminho à consolidação de interesses privados neste serviço público, nomeadamente através das Parcerias Público Privadas (PPP).
Foram assim, décadas de estrangulamento do SNS que incluíram uma elevada redução de recursos, que afetam ainda hoje, profissionais, suas carreiras e precariedade laboral, e doentes. Uma debilidade estrategicamente favorável aos negócios privados na Saúde, que vivem do financiamento do próprio orçamento do SNS, sujeito a subfinanciamento que vem agravando a fatura a pagar pelos contribuintes. Um quadro que há muito é motivo de preocupação, para quem tem consciência, que está em causa a nossa democracia social, que limitaria o direito constitucional à proteção da saúde, agravando as desigualdades sociais.
Os ataques aos fundamentos de Abril no SNS, atingiram um ponto tal de inquietação, que uniram figuras como António Arnaut, a quem é atribuída a paternidade do SNS e João Semedo, que nos deixaram em 2018 como desafio político à esquerda, a proposta de uma nova Lei de Bases da Saúde, que trave o atual declínio. Um SNS que deve ter espirito universal, geral e gratuito, com gestão integralmente pública, em que a prestação de cuidados obedeça a padrões de qualidade e humanidade, relacionando-se com as iniciativas privadas e sociais na base da complementaridade e não da concorrência, como partilharam publicamente os autores antes de nos deixarem, na linha da lei do SNS aprovada em 1979.
Bastou então haver maior sensibilidade e abertura da sociedade para questionar o estado atual da sangria de recursos, que alimenta interesses económicos na Saúde, como são as PPP ou as relações entre privados e ADSE, que propôs revisão das tabelas e preços e exigiu a devolução (no final de 2018) de 38,8 milhões de euros de despesas faturadas a mais pelos privados. Bem como algum consenso político à esquerda, para valorizar e resgatar o SNS do seu estado atual, através de uma Nova Lei de Bases da Saúde, para os lóbis dos negócios da Saúde entrarem em polvorosa em diferentes frentes.
Aos propósitos de defesa e salvaguarda dos interesses públicos no SNS que vêm sendo manifestados no essencial pela atual maioria, ainda que, com inevitáveis
diferenças, que naturalmente afrontam os lucros exorbitantes do negócio em que vêm transformando a Saúde dos portugueses, como um apetitoso mercado que os grupos económicos querem continuar a explorar e rentabilizar. Estes grupos privados, que já vinham mantendo braço de ferro com a ADSE, reagiram concertadamente com a ameaça de suspender as convenções com esta Instituição, que, através desta tática que não é nova, não dá mostras de se quer submeter às novas regras de transparência e fiscalização previstas no Decreto-lei de Execução orçamental que poderia ter sido mais ampla e previamente divulgado, para que a essência desta polémica, que visou lançar uma crise politica, fosse prontamente esvaziada e desmascarada, tal foi e é o carater chantagista desta campanha sobre beneficiários e portugueses em geral.
Os lóbis dos negócios na Saúde estão em polvorosa, porque finalmente há uma maioria que nesta área em concreto, ousou desafiar, com uma sociedade cada vez mais desperta a questionar, os interesses dos grupos económicos no negócio em que transformaram a Saúde. Este é o debate e a diferença entre esquerda e direita, mesmo com entrelaçadas lutas laborais de diferentes áreas profissionais da Saúde, umas comprometidas com a defesa do SNS e outras demasiado “cirúrgicas”, como a greve dos enfermeiros apoiada num sistema de financiamento “criativo”, como é o “crowdfunding”. Isto, num tempo de escolhas determinantes para salvar o SNS das garras dos interesses privados, que querem continuar a viver de rendas ruinosas para os portugueses.
É neste tempo, que, se exige fazer frente ao projeto da direita para debilitar o SNS, que o quer por a pagar ao privado, aquilo que compete ao próprio SNS fazer como pilar fundamental da prestação de cuidados de saúde. Para tal, urge acabar com a Lei de Bases do PSD/CDS de 1990, que veio promover a concorrência sem regras entre o privado e o público, fomentando um negócio à custa do sangramento do orçamento do estado, para lucros extraordinários, que agora se veem ameaçados e reagem consequentemente, só mesmo por essas razões do interesse primeiro do capital.
Perante tal quadro, resta mesmo a esperança que à esquerda, com a mesma legitimidade que teve em 1979 na aprovação do SNS, construa, sem inoperantes insuficiências tão características nos posicionamentos do PS no relacionamento com os interesses económicos, uma Nova Lei de Bases da Saúde em que, o BE com o seu projeto próprio tem sido determinante na clarificação da caminhada deste combate, para resgatar o SNS das garras dos grandes interesses económicos, que valorize a maior conquista da democracia portuguesa e a torne mais imune à estratégia de plataforma para negócios na Saúde, que a direita assumidamente lhe reserva.