Memória, Feminismos e História Oral

Resumo

Para o desenvolvimento da história dos feminismos da segunda metade do século XX, torna-se crucial a preservação da memória histórica de muitas mulheres, não só das que foram protagonistas de activismos feministas, como de todas as outras que, de forma ainda mais invisível, trouxeram mudanças à sua vida e à de outras mulheres. A história oral permitiu novos objectos de estudo, como o corpo e os quotidianos, estimulando um diálogo interdisciplinar com a sociologia, a antropologia e a psicologia. Trazer a voz de quem ficou silenciado na história constitui um caminho epistemológico, um processo de produção de ciência e não apenas uma forma de acrescentar novas fontes à investigação histórica.

Há mais de 80 anos Virgínia Woolf apelava a uma nova geração de historiadores/as que tomassem como tarefa e tivessem o privilégio de “desenterrarem os factos da vida passada das mulheres”.

(Woolf, 1928)

Este apelo continua a fazer sentido nos tempos actuais. “É preciso meter os quotidianos na História e isso só pode ser feito recorrendo às histórias e vivências das mulheres”

(Em homenagem à historiadora e feminista Fina D’Armada sepultada a 8 de Março de 2014)

Introdução

Para o desenvolvimento da história dos feminismos da segunda metade do século XX, torna-se crucial a preservação da memória histórica de muitas mulheres, não só das que foram protagonistas de activismos feministas, como de todas as outras que, de forma ainda mais invisível, trouxeram mudanças à sua vida e à de outras mulheres.

Sabemos que todo o acto de memória é uma construção subjectiva do passado e como tal susceptível de deformações. Podem surgir situações de ocultação ou transformação dos factos. Podem surgir discursos estereótipados, em especial, por parte das activistas, que no seu empenho legítimo de valorizar as lutas que protagonizaram, se abstraem da situação de outras mulheres menos intervenientes. Também cada mulher acaba por reflectir no seu discurso de construção da memória os papéis sociais a que foram destinadas. De facto, existe sempre uma origem social da memória mesmo quando esta é individual.

Deste modo, na construção social da memória, colocam-se questões relativas ao género, ao espaço e ao tempo do “não dito”, aos conflitos entre o discurso colectivo dominante e as interpretações individuais do passado. Tal implica que ao longo da investigação se possa fazer uma reflexão crítica sobre a memória e que, através das fontes escritas, sejam aprofundados contextos sociais e políticos assim como a precisão de datas dos acontecimentos relatados

Todavia, o recurso às histórias de vida e a outras fontes orais como entrevistas, recolha de conversas entre mulheres, testemunhos, trouxe a emergência de factos novos, não reproduzidos nas fontes escritas, assim como novos campos de análise interdisciplinar para a história, a antropologia, a sociologia, a psicologia, o direito e outras disciplinas. A utilização de tais fontes permite, ainda, compreender melhor alguns documentos escritos e dar a palavra à subjectividade das mulheres.

Não é possível uma história dos feminismos sem a memória de mulheres de diversos sectores sociais, etnias, idades, orientações sexuais, mais ou menos envolvidas no activismo, que são portadoras de um património histórico ainda desconhecido. Os feminismos precisam de uma memória histórica. Construir essa memória é um desafio político e historiográfico, tal como afirmava a historiadora Anne Cova, na sessão de abertura do seminário evocativo do I Congresso Feminista e da Educação realizado em Maio de 2004 em Lisboa.

Nos feminismos a questão da memória é, de facto, fundamental por duas outras razões: a história tradicional não abriu espaço para que as mulheres surgissem como sujeitos históricos; o eclodir dos movimentos feministas situa-se numa “história do tempo presente”, para a qual a reconstituição da memória, o recurso a fontes orais e a fontes escritas de alguma especificidade são imprescindíveis (Tavares, 2011:29). Também a investigadora galega Carme Adán (2003:79) acrescenta uma outra razão ao referir que tornar visíveis as mulheres na história, reflectir sobre as suas experiências, devolver-lhes a palavra, fazer ouvir as suas vozes, recuperar memórias silenciadas, se integra no movimento teórico “das margens para o centro”, no qual se insere o feminismo, enquanto movimento político ao pretender que as mulheres deixem de ocupar as margens da sociedade e se situem no centro do conhecimento e da política.

História das mulheres e história oral

Segundo a historiadora Françoise Thébaud (2009:11) “A história oral e a história das mulheres constituem-se como acontecimentos paralelos nos finais da década de 1960 e durante a década de 1970”. A história das mulheres e a história oral trouxeram novos objectos de estudo, como o corpo e os quotidianos, estimulando um diálogo interdisciplinar com a sociologia, a antropologia e a psicologia. A história das mulheres e a história oral forçaram um outro olhar da história tradicional sobre realidades desconhecidas.

A evolução da história das mulheres e da história oral tem sido diferente de país para país.

Em Itália, segundo Roberta Fossati (2009) a explosão do movimento de mulheres, em 1972, exaltou o papel activo das mulheres na história dando valor político à palavra das mais oprimidas através de auto-biografias, entrevistas, reflexões e discussões nos grupos de mulheres. Nem sempre, este material da história oral, foi transcrito e devidamente preservado. Na década de 1980, descrita por Annarita Calabro (1985) como de “feminismo difuso” este panorama alterou-se com a formação de centros de documentação e de investigação em várias cidades de Itália. Surgem os primeiros colóquios internacionais sobre história oral onde existiram sessões dedicadas às experiências de mulheres académicas e não académicas. Começam a surgir questões metodológicas quanto à qualidade das fontes orais. Nos anos de 1990, assiste-se à utilização das fontes orais em diversas disciplinas, muito em especial na história das mulheres.

A realidade anglo-saxónica, mais focalizada no Reino Unido, é transmitida pelas historiadoras Joanna Bornat e Hanna Diamond (2009) que realçam o carácter interdisciplinar das origens da história oral e a sua avaliação nas últimas décadas, em especial na sua ligação à história das mulheres. A refutação que o historiador Paul Thompson fez às críticas[1] de que a história oral era simplista, com falha de teoria do ponto de vista epistemológico, inseria-se na contestação que as defensoras feministas da história oral faziam à construção histórica mais “ortodoxa”, pela vontade de legitimar as experiências pessoais e a emergência das subjectividades.

Esta revalorização da história e da memória das mulheres não foi isenta de questionamento do ponto de vista conceptual. É o caso de Joan Scott (1992) com a sua desvalorização do conceito de “história das mulheres” e a adopção do conceito de “género” como categoria de análise histórica, ao reconhecer a fragmentação do sujeito “mulher”, pela sua representação numa pluralidade de identidades em termos de classe, etnia, sexualidade, idade, diferenças estas, que podiam conduzir a ideias e interesses divergentes. Esta perspectiva teórica revolucionou a histórica dos feminismos ao mostrar que as relações de poder entre os sexos são construções sociais e fazem parte das relações sociais que caracterizam as sociedades, abrindo campo para uma história mais relacional.

Um novo patamar de afirmação da história dos feminismos e da história oral surge com o interesse crescente por parte de historiadores/as pela descoberta de aspectos da vida quotidiana, em especial das mulheres, e pela relação entre representações públicas e individuais do passado. A reflexão feminista sobre as questões metodológicas na história oral, ultrapassando a celebração da experiência das mulheres para uma compreensão mais complexa no campo da história oral, onde a análise, a interpretação e a compreensão dos contextos sociais e culturais, deu maior consistência à intervenção feminista.

Em França, o debate sobre a história oral prolongou-se por trinta anos em torno da recusa em encarar a legitimidade da expressão “história oral”, substituindo-a por fontes orais, arquivos orais, as quais seriam apenas adequadas a certos objectos de pesquisa. Françoise Thébaud (2009:12) refere que no Congresso Internacional realizado em Bucareste em 1980 sobre Ciências Históricas, na mesa redonda sobre história oral não existia nenhum/a historiador/a francesa. O primeiro impulso surgido em França em torno da recolha de testemunhos e de registos de memória não surgiu da área da história, mas da sociologia e da antropologia. O recurso à história oral surgiu por duas vias: a necessidade de colmatar as insuficiências das fontes escritas e a mudança dos campos de investigação e das escalas de observação com a introdução das questões relativas ao corpo, às sexualidades, aos quotidianos, à família, ao activismo feminista.

Em Portugal, está por fazer um balanço historiográfico sobre a relação entre história das mulheres e do género e a história oral. De notar que, com excepção do arquivo em história oral do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, coordenado por Manuela Cruzeiro, são raros os projectos de história oral existentes no país na década de 1990. Só em 2001 surge a primeira disciplina de história oral no ensino superior (ISCTE) e os primeiros congressos e seminários sobre o tema só se realizam em 2006 e 2007. O primeiro, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e o segundo, em Lisboa, organizado pela Fundação Mário Soares e pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Em 2009, no ISCTE, o Centro de Investigação e Estudos em Sociedade organiza o seminário: “Abordagens biográficas, memórias e histórias de vida”. A relação entre a história das mulheres e estas iniciativas é ainda tímida. É de valorizar a conferência realizada em 22 de Junho de 2013 com a participação de historiadoras/es e de responsáveis por arquivos históricos como a Torre do Tombo e a Hemeroteca de Lisboa[2].

Se é certo que historiadores de renome fizeram as suas teses de doutoramento sem recurso a fontes orais, existem um conjunto de trabalhos de investigação onde as fontes orais foram utilizadas e nomeadas.[3] Segundo Luisa Tiago de Oliveira (2010), no seu artigo “História Oral em Portugal”, existem trabalhos de investigação como o de Paula Godinho sobre “Memórias de resistência rural no Sul (1958-1962), onde a “história oral é utilizada como metodologia fundamental”. Este trabalho de Paula Godinho cruza com a história das mulheres ou do género por via dos testemunhos de mulheres que foram presas e resistiram ao regime de ditadura fascista. Os testemunhos orais ocorrem ainda em teses de mestrado em Estudos sobre as Mulheres da Universidade Aberta como as de Lúcia Serralheiro, defendida em 2002, sobre a delegação do Porto da Associação Feminina Portuguesa para a Paz (1942-1952) e, em 2003, a de Antónia Balsinha sobre a resistência das mulheres de Alhandra na década de 1940.

Na última década têm surgido teses de doutoramento cujas metodologias se baseiam em histórias de vida de mulheres e, em alguns casos, consideram mesmo que se está perante uma epistemologia que se destina a preencher os silêncios de quem ficou fora da história. É esta a perspectiva de Maria José Magalhães na sua tese de doutoramento: “Mulheres, Espaços e Mudanças: o pensar e o fazer na educação das novas gerações” (Magalhães, 2005).

Histórias de vida como caminho epistemológico feminista

Trazer a voz de quem ficou silenciado na história constitui um caminho epistemológico, um processo de produção de ciência e não apenas uma forma de acrescentar novas fontes à investigação histórica. As histórias de vida podem contribuir para uma reflexão crítica epistemológica, colocando em causa uma construção de pensamento baseado numa falsa objectividade, numa separação rígida entre sujeito investigador e sujeito investigado, na negação da subjetividade do conhecimento.

Como diversas autoras mostraram essa separação implicava graves consequências: objectivizar a mulher como um «dado», manter os pressupostos sexistas das categorias estatísticas, negar e deslegitimar a validade da subjectividade do conhecimento, a compreensão e significado da experiência feminina, uma vez que se baseiam no particular, emocional, não racional, íntimo e quotidiano (Magalhães, 2012:11)

Ainda, segundo Sofia Neves “O conhecimento da realidade, que é sempre parcial e subjectivo, depende do acesso às experiências individuais e colectivas, sendo este acesso viabilizado pela linguagem e influenciado pela interacção entre investigadores/as e investigados/as” (Neves, 2012:74).

Em termos de produção de conhecimento histórico, o desafio é maior. Não se trata apenas de contestar o androcentrismo das fontes ou a busca de sujeitos históricos silenciados. Quebrar a invisibilidade das mulheres na história é importante, mas não é suficiente fazer ouvir as suas vozes. É preciso que essas vozes surjam como instrumentos de emancipação, não só delas próprias no seu refazer crítico do passado, como também contribuam para uma perspectiva histórica de reinterpretação dos factos e dos discursos dominantes.

Para além do momento de questionamento dos saberes dominantes, os estudos feministas, segundo Françoise Collin (2008:43), devem ter momentos constitutivos de saberes alternativos. Também a história das mulheres ou do género se tem de abrir aos diálogos interdisciplinares, aos conhecimentos situados evitando generalizações que ocultam as diferenças entre as mulheres em termos de classe social, etnia, regiões de pertença, sexualidades e idade.

Para Gisela Bock (1989), as investigações sobre mulheres em história não se devem limitar à busca de um objecto negligenciado, mas alargar-se para as relações negligenciadas entre seres humanos. Estas relações sociais produzem-se em contextos culturais e sociais diferentes e são marcadas pelos quotidianos, pela linguagem e por saberes pessoais que não são valorizados pela ciência na sua postura mais ortodoxa. As histórias de vida permitem a emergência desses saberes alternativos, em especial por parte das mulheres, nas respostas que estas acabam por dar perante situações diversas dos seus quotidianos. Contribuem também para “a revalorização do sujeito da ação social confrontando o discurso universalista, unidirecional e racionalizador trazendo a voz dos/as silenciados/as da história” (Magalhães, 2012: 9-10)

O trabalho em histórias de vida exige uma grande ligação à narradora da história, afirma Maria José Magalhães que da sua experiência metodológica e epistemológica nesta área realça que o sujeito deixa de ser objecto de estudo para interagir com a própria investigação, o que requer por parte de cada investigador/a a disponibilidade para poder redireccionar o percurso da pesquisa. (Magalhães, 2012:27).

A recolha de histórias de vida de mulheres das regiões da Madeira e do Minho na primeira fase do projecto “Memória e Feminismos”[4] baseou-se na grande ligação dos núcleos responsáveis em cada região às mulheres narradoras das suas histórias. A escolha das mulheres a serem ouvidas teve em consideração a diversidade de sectores sociais e profissionais, de idades, de experiências de vida.

Os discursos produzidos nas histórias de vida foram analisados segundo três eixos.

– Os trajectos emancipatórios em várias dimensões que se cruzam: a mobilidade social que é feita por estas mulheres à custa de muitos sacrifícios para ultrapassar as barreiras impostas pelas comunidades de origem, em especial rurais; a sua inserção em novas profissões; a alteração nos seus quotidianos; a valorização educacional.

– A contribuição para a construção do sujeito colectivo feminista.

– Os silêncios não só na perspectiva do que não é dito, mas também dos actos que substituem a palavra dita.

Trajectos emancipatórios

No discurso que se segue cruzam-se duas dimensões no trajecto emancipatório da narradora: a valorização pela educação assim como a necessidade de romper com o destino que lhe estava destinado como mulher. A mobilidade social surge por vontade própria num contexto muito difícil, onde a saída de uma rapariga sozinha para França era pouco usual na sociedade madeirense do início da década de 1970.

“A minha mãe ensinou-me a bordar desde pequenina. Eu odiava bordar.” “Eu gostava era de ler” . “Se apanhasse um livro que alguém me emprestasse era uma loucura. Mas sentada ali a bordar…”

“Apesar da professora nos bater com régua ou com uma vergasta, eu gostava da escola…gostava de aprender”. Quando completei a 4ª classe, acabou-se a escola. Não havia dinheiro para pagar um colégio no Funchal”. “Até que mais tarde apareceu uma senhora a quem eu devo muito. Ela informou-me que nesse ano haveria exames para regente escolar. Foi uma luz que se acendeu. Eu estava trabalhando era professora. Quando vim estudar para o 5º ano as minhas irmãs já tinham feito a quarta classe. (…)

Decidi ir para França em 1972, fui sozinha com passaporte de turista.

Deu-se o 25 de Abril e a minha volta para a Madeira. Quando cheguei ainda fiz duas cadeiras do 7º ano. No ano seguinte, fui para a escola do Magistério e dava aulas de francês à noite. Foi muito cansativo. Depois ainda tive de trabalhar mais dois anos no 2º ciclo para poder ganhar as habilitações próprias e entrar para a profissionalização”. (Conceição Pereira, 78anos, professora aposentada, Funchal)

Os trajectos emancipatórios também podem surgir por integração em novas profissões, como é o caso de Maria José Neto, presidente da Associação de Pescadores de Castelo de Neiva. “Eu nunca pensei ser pescadora….não tenho assim ninguém ligado ao mar. A primeira vez que eu vim aqui a Castelo de Neiva, foi quando comecei a namorar com o meu marido”. A actividade de pescadora surgiu por ligação ao marido com quem casou aos 17 anos. Mas nem todas as mulheres de pescadores são pescadoras. Deste modo, pode-se dizer que se tratou de uma opção. Fez curso de formação, tirou a sua carta profissional. “As mulheres já vão ao curso da FORMAR, mas é para trabalhar em terra no arranjo de redes”, afirma Maria José Neto, num discurso empoderado por ser das poucas mulheres pescadoras que existem no país.

A alteração dos quotidianos da vida de muitas mulheres numa perspectiva emancipadora ocorre, por vezes, pela vivência de experiências pessoais dolorosas. É o caso de Teresa Vieira de 61 anos, residente no Funchal que silenciou anos de violência, retirando lições e aconselhando outras mulheres a não caírem nas situações em que ela caiu.

O meu casamento não resultou. Oito dias depois de estarmos casados, já ele me batia. Durante todos os anos de sofrimento com o meu marido, fiz tudo por tudo para lhe dar o melhor.

Hoje em dia eu não fazia o que fiz. Hoje, dou este conselho às mulheres: não vale a pena lutar por um homem que não merece. Todo o homem que maltrata a mulher, não merece ser tratado como eu tratei do meu marido. A mensagem que deixo às mulheres é: pensem bem antes de fazer algo que achem que não devem. Lutem pela vossa vida! Lutem pelos vossos direitos, façam tudo aquilo que gostarem, não deixem nada para trás, não tenham vergonha! Porque se não fizermos, mais tarde nos arrependemos.

Os trajectos emancipatórios de outras mulheres surgem pelo acesso à educação como já se viu no caso de Conceição Pereira, mas também de Margarida Vilarinho, professora e voluntárial na associação CIVITAS Braga. A participação em associações e movimentos surge também como a necessidade de passar dos percursos pessoais emancipatórios para outros de características mais colectivas.

Acabei o liceu no colégio e entretanto o meu pai estava doente e eu só podia continuar a estudar porque tinha bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian, mas eu achei que tinha de ajudar os meus irmãos porque éramos seis. Decidi arranjar emprego, mas acabei o liceu e matriculei-me na faculdade. Fui para filosofia. Tirei o curso na Faculdade de Letras do Porto trabalhando simultaneamente das 9h às 18h. Com o 25 de Abril, houve da minha parte uma adesão espontânea ao movimento. Foi uma data histórica que arrasou, mudou realmente o nosso país. Eu tinha tendência para a participação e queria participar na transformação da sociedade porque já tinha ganho a consciência da desigualdade que existia, não só das mulheres mas da desigualdade em geral. Fui convidada para fazer parte da Civitas Braga…É uma associação que defende os direitos humanos. É claro que aqui se insere tudo, os direitos das mulheres, os direitos das crianças, os direitos dos ciganos, destes e daqueles, são direitos humanos e isto é de referência para o mundo.

Contribuição para a construção do sujeito colectivo mulheres

Outra componente da análise realizada centra-se na contribuição para a construção do sujeito colectivo mulheres. Importa afirmar que a construção deste sujeito se distancia da noção identitária de “mulher” como sujeito uno, que não é atravessado pelas diferenças entre as mulheres. A reflexão crítica feminista tem vindo a reconhecer a diversidade das necessidades e experiências das mulheres, a abandonar a noção de situações únicas e universais, assim como posições essencialistas (Tavares, 2011).

Deste modo, a contribuição de algumas histórias de vida para uma maior acção e consciencialização feminista colectiva, pode expressar-se através de diversas vozes:

“Fui trabalhando e inscrevi-me no Sindicato dos Bordados. Andámos pelas freguesias a reunir com bordadeiras, nos adros das igrejas, nas sacristias, por todo o lado. Lutámos pelo subsídio de Natal, para acabar com as linhas, pagas por nós…”.É assim que a madeirense Maria Ganança se refere a uma acção colectiva que não gerou só conquistas sociais para as bordadeiras, mas que elevou a consciência de muitas mulheres pelos seus direitos. E, Maria Ganança contínua “Se eu não participo nas coisas, não posso saber. Ainda estava num cantinho em Ponta de Sol. Ninguém sabia que eu existia”.

Assunção Bacanhim, empregada administrativa de uma cooperativa de consumo no Funchal, durante muitos anos, e sindicalista na União de Sindicatos da Madeira, assume que sentia necessidade de se envolver na luta das mulheres numa perspectiva feminista: “Para mim, a emancipação económica das mulheres era fundamental, porque permitia que não estivessem subjugadas a outros, fossem eles os pais, maridos, irmãos, e podiam seguir a sua vida e lutar por aquilo a que tinham direito”. A acção colectiva emana aqui de uma tomada de conciência feminista individual   em que não bastava a luta mais geral pelos sireitos sociais. Para Josefina Melim, também sindicalista do ramo da hotelaria, é a vivência de uma situação difícil que a faz integrar a luta pela despenalização do aborto:

Como fiz parte de uma família numerosa, não queria ter muitos filhos, para lhes dar melhores condições do que as que eu tive. Um mês e meio após a minha filha nascer, fiquei grávida. Conversando com o meu marido, chegámos à conclusão, que não queríamos um terceiro filho. Já tínhamos posto ponto final. Só que, na altura, o aborto era proibido pela igreja, era clandestino., abortar era uma coisa impossível. Mas eu consegui. Correu bem. E podia ter corrido mal. Conheci tantas mulheres que morreram por causa dos abortos clandestinos. Deu-me prazer saber que depois de tanta luta, o aborto foi legalizado em Portugal e eu participei nessa luta. Ainda bem que a sociedade de hoje permite à mulher se quer ser mãe ou não. (Josefina Melim, 57 anos, Machico)

Temos três casos de mulheres em que a sua contribuição para a construção do sujeito colectivo feminista tem diferentes origens. Todas sindicalistas, a sua consciência feminista emana da observação das desigualdades. No caso da Maria Ganança é uma luta muito concreta, a das bordadeiras, que a faz sair do seu cantinho, como ela afirma, e a projecta com pessoa com direitos e consciência social e feminista. Para Assunção Bacanhim existe à priori uma consciência emancipatória das mulheres que ultrapassa a luta sindicalista. No caso de Josefina Melim, foi o facto de ter sentido que, como mulher, não podia decidir se queria ou não ter mais um filho, num tempo em que o aborto era clandestino, que a levou a fazer parte de uma luta social e feminista da qual se orgulha.

Os silêncios

O outro eixo de análise das histórias de vida recolhidas situa-se nos silêncios, não só na perspectiva do que não é dito, mas também dos actos que substituem a palavra dita. A vida das mulheres é feita de muitos silêncios. Realidades difíceis de assumir, vergonha porque a imagem que a sociedade espera delas não se ajusta às suas histórias de vida e silêncios de revolta, traduzidos em actos que substituem as palavras, porque, em certas situações as palavras não chegam.

Carminda das Dores, de Viana do Castelo, empregada doméstica, mãe solteira teve periodos da sua vida dominados pelo silêncio. Não exigiu ao pai do seu filho que ficasse com ela: “Ele falhou ao encontro, não estive a humilhar-me: grávida, fiquei com o meu filho sózinha”. Uma vida de trabalho e de muitas dificuldades a enfrentar também o estigma de “mãe solteira”. Não lhe diziam nada, mas não a convidavam para ir às festas: “só uma moça da aldeia não me rejeitava”. Um silêncio feito de rejeição dominava nas pessoas da aldeia em relação à Maria das Dores e existem silêncios que ferem mais que as palavras. Também o silêncio de revolta ocorreu em situações como a seguinte:

Uma vez, trabalhei numa casa em que me davam o caldinho para os rapazes. Éramos 4 jornaleiras e estavamos à espera na mesa e consoante ela tirava rapava o tacho e eu estava a pensar que não havia caldo para os rapazes. Segue-se que fomos para fora para uma salinha de estar e ela chama-me para ir buscar o caldo para os meninos.Eu pensei que caldo é que havia de levar porque ela estava a rapar. Ela encheu-o com água e eu encostei a mim e deixei-o cair no chão.Nunca mais houve caldo.

Existem silêncios que atravessam as vidas, como acontece com Izídia Rodrigues que com 62 anos decidiu quebrar um desses silêncios na sua história de vida: “Ele disse-me, « o paizinho vai-te dizer uma coisa, tu estás uma rapariga grande e os rapazes andam com o olho em cima de ti; se eles falarem em alguma coisa, tu não fazes nada com eles; o pai ensina e faz devagar». Não respondi e fugi. Pus-me toda encolhida ao pé do portão. Ele pediu para não dizer nada”.

As histórias de vida trabalhadas com as mulheres do projecto “Memória e Feminismos”são potenciadoras de uma linguagem de empoderamento de algumas delas. Algumas autoras argumentam que as vítimas de violência ao narrarem as suas histórias de vida conseguem ultrapassar situações depressivas (talking cure), beneficiando desse espaço de experiências relatadas (Summerfield, 2000), (Atkinson, 2011). Mas tais espaços de partilha da história pessoal também podem ser dolorosos e rodeados de muitos silêncios. As subjectividades das vozes e dos silêncios na construção do sujeito colectivo mulheres constitui uma outra dimensão da história dos feminismos que precisa de ser mais desenvolvida.

Texto de Manuela Tavares, investigadora do CIEG, ISCSP/UL; Maria José Magalhães, da FPCE, Universidade do Porto e Presidente da UMAR; Teresa Sales, Coordenadora do Projeto “Memória e Feminismos” e Vice-Presidente da UMAR

 

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Thébaud, Françoise (2008), “Genre et histoire”, in CASTRO, Zília Osório, dir., Falar de Mulheres, História e Historiografia, Lisboa, Livros Horizonte, pp.187-201.

Notas:

[1] Críticas elaboradas pelo Popular Memory Group do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham.

[2] Conferência realizada pelo Projecto “Memória e Feminismos” em Lisboa, no Centro de Cultura e Intervenção Feminista que contou com a participação de Anne Cova, ICS; Manuela Tavares, CEMRI e CDAFEG; Maria Augusta Seixas, jornalista, Álvaro Matos, director da Hemeroteca Municipal de Lisboa; Helena Neves, professora universitária; Silvestre Lacerda, sub-director da DGLAB (Arquivo Nacional da Torre do Tombo);Guida Vieira, coord. Madeira; Ana Pessoa, documentalista; Rui Bebiano, Historiador, Centro Doc. 25 de Abril, Univ.Coimbra; Irene Pimentel, historiadora; Alfredo Caldeira, Fundação Mário Soares; Natividade Monteiro, Faces de Eva/UNL e CEMRI

[3] Trabalhos de investigação de João Freire, João Madeira, Vanda Gorjão, Paula Godinho, Maria Antónia Pires de Almeida, Inácia Rezola, Dalila Mateus, Paula Borges dos Santos, entre outros nomes.

[4] O projecto “Memória e Feminismos” que a UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta está a desenvolver através do Centro de Documentação e Arquivo Feminista Elina Guimarães tem recebido uma pequena subvenção da CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Para além das regiões da Madeira e Minho, estão-se a trabalhar histórias de vida com mulheres das regiões de Coimbra e Setúbal e vir a cobrir no futuro Viseu e Açores. Para além dos registos audio-visuais e das transcrições foram realizados vídeos para cada região e uma brochura para a Madeira.

1 comentário em “Memória, Feminismos e História Oral”

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