Quero falar de migrações. Faço-o pela urgência de políticas europeias humanistas, com a convicção de que é neste domínio que Civilização e Obscurantismo se confrontam em duas faces extremadas. Tenho a noção de que a abordagem de um objeto tão complexo e multiforme deve ser pluridisciplinar e não se compadece com sínteses, simplificações ou análises monolíticas. Poucas linhas, muito circunscritas, muito em modo de desabafo, não esclarecem acerca do assunto, porém concebem uma comoção, um abalo, uma inquietação, uma curiosidade, talvez o pingo de luz essencial para incendiar as trevas que progridem.
Serei propositadamente maniqueísta. Por vezes diz-se melhor das coisas por contraste, e no caso concreto há mesmo contraste, apesar das nuances que caraterizam os ambientes reais. As aspas, as vírgulas, as exceções, as condições, as contradições e os contextos específicos são pormenores dos quais abdico.
Não precisamos de estar muito atentos para percebermos que precisamos de estar muito atentos ao fenómeno das migrações. É neste domínio que Civilização e Obscurantismo disputam, com ar de democracia, um debate desigual de informação com desinformação, de conhecimento com desconhecimento. De um lado, estão os que argumentam pela aceitação e acolhimento dos migrantes – do outro, os que defendem os muros, o arame farpado e o encerramento dos portos. De um lado, os que acreditam que as diferenças entre comunidades humanas podem formar substrato de desenvolvimento – do outro, assume-se a crença de que o convívio entre comunidades diferentes arruína as suas identidades e expõe-nas a mais crime e doença pública. Não importa referir que a evidência empírica rejeita a hipótese de associação entre mais crime e mais doença com a diversidade – interessa insistir nas falsas premissas que fomentam a rejeição da hipótese de associação positiva entre gente diferente. Se o que carateriza a Civilização é fundamentar as opiniões nos factos e na ciência, o Obscurantismo serve-se de cenários fabricados com o intuito de inflamar crenças e preconceitos que sirvam os seus propósitos. No contexto, a propagação do medo para o desejado ódio racial e religioso.
A agenda política anti-imigração, não o é de facto; traduz-se, antes, numa agenda racista e xenófoba, que utiliza o subterfúgio da demonização dos refugiados e dos imigrantes de raça ou religião distinta. Sim, é um facto: o Obscurantismo tem conseguido enlodar a Civilização no seu pântano de pós-verdades e notícias falsas. Resultados? A eleição de Donald Trump. O Brexit. Os governos da Polónia, Hungria, República Checa, Eslováquia, Áustria e Itália. O alargamento da base eleitoral nazifascista na Europa.
Sabemos bem que sempre existiram setores hostis à imigração na Europa, no entanto, estes resumiam-se a setores marginais, frequentados por racistas e xenófobos assumidos. Sempre pretenderam disseminar a conceção de que os imigrantes não respeitam as normas sociais dos países que os acolhem e que a imigração provoca o aumento do desemprego e a redução dos salários dos nativos, em concomitância com aumentos de impostos, transferências sociais, uso de serviços públicos, despesa pública, e por aí adiante. A profunda e duradoura crise económica provocada pela crise financeira de 2008, criou um caldo social mais sensível a estas opiniões; todavia, a coincidência temporal dos ataques terroristas em solo europeu com a crise dos refugiados, terão sido os maiores facilitadores da adesão de muitos europeus aos ideais anti-imigração. Quando o propósito consiste na generalização do ódio, a estratégia mais eficaz é a generalização do medo. Quando o propósito consiste na generalização do medo, a estratégia mais eficaz é a generalização do sentimento de insegurança.
A categorização dicotómica que foi adotada podia ser qualquer outra. Podia até considerar a verdade fundamentada em factos e ciência como obscurantista e a mentira construída a partir de crenças e preconceitos, como civilizada. O que realmente importa é a conceção de humanidade perfilhada. Todos nós percecionamos e agimos no mundo de acordo com as nossas aprendizagens e vivências. O que está em causa é o paradigma a que aspiramos. Se aspiramos a uma sociedade homogénea em termos raciais e religiosos, onde as minorias existam sem lugar, sem direitos e sem dignidade, remetidas a guetos ou campos de concentração e sujeitas à prepotência e ao ultraje, estamos no bom caminho. Estamos no bom caminho para o regresso do nazismo e do fascismo. Dos holocaustos. Se aspiramos a uma sociedade de diversidade, de respeito por todos os cidadãos, com direitos iguais e igualdade de oportunidades, temos que inverter a direção.
Chegamos até aqui por condescendência, pelo menosprezo de um pulsar adormecido, mas não extinto, nos europeus. Por um lado, as políticas educativas e de cidadania não têm promovido de forma eficaz, a desvinculação dos nativos da Europa aos símbolos anacrónicos da escravatura, do colonialismo, da conquista, da evangelização, legitimando um sentimento de superioridade que se perpetua, mesmo quando disfarçado pelos requintes da cortesia e da polidez. Por outro lado, a ineficácia das políticas de integração social das minorias étnicas, muito tem contribuído para a cristalização da desigualdade interétnica, que consubstancia uma situação de superioridade objetiva, uma superioridade social que se converte em superioridade étnica. Não há semente que pegue em solo estéril. O racismo e a xenofobia só prosperam, na medida em que há condições objetivas e subjetivas que o domínio da política social não tem sabido debelar. Mas não é só no domínio destas políticas que a Europa tem falhado.
Permitir que se levem a cabo reformas constitucionais de depauperação dos direitos das minorias nos estados europeus, defrauda os alicerces da Europa. A igualdade na diversidade é um pilar fundamental da Europa que nos foi prometida. Não é uma questão de esquerda ou de direita – é, antes de mais, de humanidade ou desumanidade. Esta Europa só terá futuro se conseguir assegurar o cumprimento integro dos preceitos democráticos e humanos. Não bastam as palavras de repúdio ou ações equiparáveis. A Europa tem de impor sanções aos países que atentam contra a dignidade das pessoas. Não faz sentido que a mesma Europa que penaliza os países que excedem os 3% de défice orçamental (mesmo que seja para salvar vidas ou para arrancar gente da miséria) fique impávida perante o esmagamento da dignidade das pessoas. Trata-se de uma contradição insanável, mortal, e todos percebemos porquê. É a perversão.
Também é a perversão, a incúria com que se autoriza o perverso na fruição da Era Digital. Há tempos deparei-me com uma página de Facebook intitulada “base de dados de brancas que andam com negros”. Foi denunciada e fechou. Porém, todos os dias abrem novas páginas instigadoras de racismo e xenofobia. Existem canais, como o OLX, que só publicam conteúdos depois de analisados. É possível analisar as páginas e as publicações na internet antes destas acontecerem. O racismo é proibido. Podemos ser racistas, mas não podemos exerce-lo, nem distribuir panfletos racistas. É muito importante que se exija às empresas que operam no digital, o desenvolvimento de metodologias de controlo de conteúdos, pelo menos nos casos mais óbvios. Trata-se de um imperativo da decência. Não se pode admitir que circulem mensagens do tipo “os imigrantes violam as nossas mulheres” com fotografias de mulheres violentamente agredidas, no espaço público. São mensagens que têm impacto e motivam o ódio, porém, não é esse o problema: o problema é que não são verdadeiras. E este é o dia-a-dia na internet.
Outro exemplo, aparentemente colateral (e escrevo “aparentemente” porque em política escreve-se torto por linhas direitas) permite ilustrar a força da internet na formação da opinião. Evoco-o porque me feriu e fez-me perceber do perigo da alucinação propositada e desarvorada da extrema direita na Era Digital. Para eles, vale tudo, vale mesmo tudo.
Todos conhecem Pepe Mujica, Nelson Mandela, Che Guevara, Salvador Allende. Muitos interessaram-se pela sua vida, outros apenas os conhecem de nome. Se eu fosse um dos que apenas os conhecem de nome, hoje teria deles a mesma opinião que tenho de Adolf Hitler. Isto porque há inúmeros documentários e opiniões em canais de internet que constroem uma biografia política completamente deturpada e manipulada dos políticos que mencionei. Somos a favor da liberdade de expressão, mas a liberdade de expressão não se pode confundir com o direito de disseminar mentiras e notícias falsas. A Europa tem de apostar fortemente em políticas de controlo de plataformas e conteúdos nos canais da internet. Tem de ser possível filtrar, entre esta sobrecarga de informação que circula livremente, o que é verdadeiro do que é mentira. Trata-se, porventura, da tarefa mais difícil de levar a cabo, mas por certo a mais importante. A partir daqui as pessoas sentem-se informadas quando estão desinformadas. A partir daqui a ignorância deixa de saber que ignora e convence-se que sabe. Nada pior do que a ignorância que não se sabe ignorante. Torna-se rígida, estrutural, prepotente. Generaliza-se. Globaliza-se. É o enorme retrocesso civilizacional.
A qualidade das nossas escolhas está intimamente relacionada com a qualidade da nossa informação. A qualidade do nosso sistema político, económico e social está intimamente relacionada com a qualidade das nossas escolhas. Muito se perde com a disseminação da desinformação e do desconhecimento. Cabe aos canais que permitem a divulgação da mentira, evitarem que ela seja divulgada ou ressarcir dessas perdas. É aqui que o Obscurantismo derrama as suas trevas sobre a Civilização. É aqui que o Obscurantismo ganha força. A Europa não é Obscurantismo. É Civilização. Não podemos claudicar. Pelo Futuro.
Excelente. Concordo em absoluto.
Muito obrigado!
Gostei do texto, foca na perfeição o tema em causa.
Está escrito de uma forma clara e fácil de se entender.
Muito obrigado!
Excelente artigo.
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Excelente, nada mais acrescentar está tudo dito de uma forma clara e precisa.
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