Fundamentos históricos e culturais da violência de género

RESUMO

Os fundamentos históricos e culturais da Violência de Género não deixam de estar ligados às diferentes perspetivas com que se encara este fenómeno social.

Contrariamente às perspetivas individualistas em que a violência de género é explicada pelos traços de personalidade e às explicações que colocam na estrutura familiar as causas do fenómeno, opta-se, neste artigo, por fazer uma abordagem segundo as perspetivas feministas e de cariz marxista que colocam na estrutura social e económica, assim como nas relações de poder entre mulheres e homens os fatores determinantes na explicação da violência de género.

 

As origens da dominação masculina

Segundo Engels (1884), a “grande derrota do sexo feminino” acontece quando o homem transforma a mulher em simples instrumento de reprodução por forma a garantir a monogamia (para as mulheres), única forma de assegurar a identificação dos seus próprios filhos para a transmissão dos seus bens. A filiação segundo o direito materno acaba nesse momento. Deste modo, a monogamia aparece na história como a escravização de um sexo pelo outro, como a “proclamação de um conflito entre sexos”, assim como “a primeira opressão de classes surge com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino” (Engels:76-86).

Apesar das limitações da teoria marxista ao não analisar de forma mais aprofundada as questões da reprodução e as contradições de género para além das relações de classe, a análise de Engels é a primeira que consegue falar do conflito entre sexos e da opressão das mulheres pelos homens em determinada fase da evolução histórica.

A esta visão marxista das origens da grande desigualdade de poderes entre mulheres e homens junta-se a perspetiva feminista desenvolvida na década de 1970: o patriarcado como sistema de dominação dos homens sobre as mulheres. Esta perspetiva feminista surge da crítica das feministas radicais às insuficiências da análise marxista. Algumas feministas socialistas como Sheila Rowbotham (1972), Juliet Mitchell (1973) e Zillah Eisenstein (1979), incorporaram os contributos feministas na análise marxista.

Uma das teóricas do feminismo radical Shulamith Firestone, no seu livro A dialética do Sexo (1970), liga os aspectos positivos da teoria marxista, como libertadora da dominação de classe à vertente psicanalítica libertadora da sexualidade. Deste modo, havia que libertar as mulheres do sistema patriarcal assente numa estrutura familiar opressora das mulheres. As mulheres precisavam de controlar a reprodução, a propriedade dos seus próprios corpos, porque os homens tinham controlado ao longo dos tempos, os corpos e a sexualidade das mulheres. Kate Millett, em Sexual Politics (1974) afirma que a instituição principal do patriarcado é a família que não só incentiva as mulheres a conformar-se como dita regras sobre o papel das mulheres na sociedade. (Millett:33) Ainda, segundo Kate Millett, as relações dos sexos sempre se basearam no poder dos homens e esta dominação sexual tinha carácter universal, permanecendo invisível, em muitas situações pois fazia parte da ideologia dominante.

Segundo Susan Brownmiller, que publica em 1975, Against Our Will, a primeira real propriedade do homem é a mulher. A captura das mulheres pela força era algo perfeitamente aceitável socialmente. As mulheres eram troféus de guerra e objeto de conquista, de poder e de prazer para os conquistadores.

A hipotética proteção das mulheres da sua comunidade por parte de alguns homens perante a violação e rapto feita por guerreiros que usurpavam partes do território, transformou-se numa consolidação do poder masculino sobre as mulheres.

É um facto que as tendências de dominação não estão inscritas na natureza masculina, mas constroem-se no processo de socialização. Os homens são obrigados a afirmar a sua superioridade, a demonstrar a sua força, a dirigir e a governar, para alcançar uma situação que se assemelha à virilidade. Esta identifica-se com a capacidade sexual e com a atitude para o combate e exercício da violência. A identificação da virilidade com o poder dos homens leva a que se considere legítimo impor a sua autoridade sobre as mulheres. Estas são consideradas seres inferiores que podem ser usados. Deste modo, a violência contra as mulheres está intimamente ligada ao controlo da sexualidade feminina.

No patriarcado toda a sexualidade feminina está controlada e reprimida e as mulheres são consideradas propriedade sexual dos homens. A violência continua a ser necessária para manter relações de poder desiguais.

Segundo a visão marxista mais clássica, a autonomia das mulheres conseguia-se com a entrada das mulheres para o mercado de trabalho, dado que a sua independência económica seria fundamental para a libertação face ao domínio masculino. Não colocando em causa a grande importância deste percurso emancipatório das mulheres há que refletir, tal como nos aponta Anália Torres, que este é um processo bem mais complexo: “Os mecanismos da assimetria e da discriminação ou do que hoje chamamos do género como categoria social, são mais transversais e vastos e, simultaneamente mais subtis” (Torres, 2004: 18). É um facto que à intensa atividade das mulheres em todo o mundo na esfera da produção não correspondeu uma diminuição do peso das chamadas “tarefas de reprodução” ou seja o sistema económico dominante necessita de mulheres na atividade produtiva, muitas vezes como mão-de-obra mais barata e precisa também de um trabalho não remunerado no espaço reprodutivo, preservando os mecanismos estruturais de subordinação das mulheres e aliviando o Estado das despesas sociais nesta área.

Para Maria José Magalhães, quanto maior é a desigualdade na repartição de responsabilidades e de recursos económicos, maior é o poder que os homens exercem sobre as mulheres e maior é o risco das mulheres sofrerem situações de violência. (Magalhães, 2007:39).

 

A violência contra as mulheres é algo que se constrói e desenvolve culturalmente

A cultura patriarcal preparou as mulheres durante séculos para a aceitação do domínio masculino e da violência. O confinamento das mulheres ao espaço doméstico reforçou essa submissão.

Não sendo, como já foi dito, a violência um comportamento natural dos homens contra as mulheres, mas sim uma atitude sustentada em valores de uma cultura dominante assente na desigualdade de poderes, na misoginia e no sexismo, o combate à violência de género passa por uma luta firme contra essas conceções. A depreciação das mulheres e a crença de que é preciso exercer poder sobre elas, assim como o ódio e o medo que recai sobre elas, estão relacionados com as crenças da inferioridade das mulheres.

A cultura ocidental tem reforçado a força do patriarcado, assim como as religiões ao admitirem a ideia de inferioridade das mulheres acabam por justificar a violência sobre elas. As manifestações do patriarcado surgem ao longo da história, desde a Cultura Clássica até à atualidade. A mitologia tem muitos episódios de domínio dos homens sobre as mulheres. Nos clássicos gregos, a naturalidade com que se tratavam as violações e os maus-tratos sobre as mulheres são bem visíveis em obras como a Odisseia ou a Ilíada onde se narra como os guerreiros gregos raptam e se apoderam das mulheres dos seus inimigos, violando-as e fazendo-as suas escravas.

A filosofia aristotélica considerava os homens como seres fortes, completos e as mulheres como seres inferiores, fracos e incompletos. As mulheres ficavam relegadas na intimidade da casa, sem poder de intervenção no governo da cidade. As suas ideias espalharam-se durante séculos e reforçaram a marginalização das mulheres.

Nascida de uma costela de Adão e marcada pela cedência perante a tentação da serpente, Eva é o sinónimo da mulher-perigosa, da mulher-veneno, da mulher em quem não se pode confiar. Por isso nas maldições de Jeová surge de forma bem clara: “O teu marido dominará sobre ti”. No seu escrito O adorno das mulheres, Tertuliano de Cartago, o primeiro teólogo do Cristianismo (150-220 DC), lembra o Génesis 3: “Tu darás à luz na dor e na angústia, mulher; o teu marido é o teu senhor. Está viva ainda neste mundo a sentença de Deus contra o teu sexo. És tu a porta do diabo”. Mas para a Igreja Católica, Maria veio com a sua pureza salvar todas as mulheres da maldição. Assim se refere numa homilia Proclo de Constantinopla: “Por Maria todas as mulheres são bem-aventuradas”. (Monique Alexandre, 1993). Mas Maria é a imagem da mulher submissa, a mulher que é salva ao tornar-se mãe.

As interpretações de Aristóteles realizadas por S. Tomás de Aquino e por outros pensadores clericais, que detinham o poder sobre a escrita e o saber, sustentaram as debilidades das mulheres e a sua submissão aos homens. Por referências incessantes à natureza das mulheres, estes pensadores medievais enraizaram na cultura ocidental a ideia de que o feminino se opõe ao masculino, assim como a natureza à cultura.

Segundo a historiadora Christiane Klapisch-Zuber (1993), na Idade Média controlar ou castigar as mulheres e antes de mais o seu corpo e a sua sexualidade desconcertante ou perigosa era tarefa dos homens. O corpo das mulheres só devia servir para a reprodução. Arquivos medievais de cidades em Itália, França e Inglaterra registam violações de mulheres por todo o tipo de homens. As mulheres tinham de apresentar provas das agressões para que as leis fossem aplicadas. Contudo, se a mulher ficasse grávida de uma violação, tal era entendido como se ela tivesse consentido. Também se ela fosse acusada de prostituta pelos violadores, a lei não era aplicada. O adultério por parte das mulheres era repudiado por toda a família e a morte era a única solução para repor a honra da família. O adultério, por parte dos homens, era consentido e as suas aventuras sexuais não manchavam a honra da família.

Os pensadores da modernidade continuam na senda desta misoginia. Com Espinosa, ao afirmar que é a essência feminina que determina a autoridade dos homens sobre as mulheres. Com Rousseau que, em plena revolução francesa, exclui as mulheres da cidadania. Com Kant que considera as mulheres como seres intelectualmente menores. Maria Luísa Ribeiro Ferreira considera mesmo que “os filósofos modernos têm em pouca conta as mulheres, podendo-se mesmo qualificá-los de misóginos” (1998:137).

Neste século, apesar dos significativos avanços no estatuto das mulheres em muitos países, de uma maior compreensão do fenómeno da violência contras as mulheres por parte das instituições, dos governos e da sociedade em geral, permanece “uma cultura de violência na socialização estereotipada da masculinidade hegemónica” com as componentes do “ciúme” e da subalternização das mulheres nas relações conjugais. (Maria José Magalhães, 2007:27). Ainda, segundo esta autora as mulheres são socializadas para casarem na base de um grande amor, levando a que fiquem emocionalmente desprotegidas. Com a violência sobre as mulheres reforçam-se as ideias de uma superioridade masculina que acaba por ser admitida e reconhecida pelas próprias mulheres como seres dominados.

Na cultura dominante, em especial na designada cultura de massas, através da publicidade, das séries televisivas, os homens aparecem como sujeitos ativos, independentes, com poder, enquanto as mulheres são vistas como sujeitos passivos, objeto do desejo masculino. Esta cultura favorece a violência contras as mulheres.

É reconhecida a importância dos meios de comunicação social na definição do que é socialmente relevante. Os media reproduzem modelos hegemónicos de masculinidade e feminilidade que consolidam um sistema binário de representação social com papéis sociais diferenciados, potenciadores do desequilíbrio de poderes entre mulheres e homens. É um facto que os papéis atribuídos às mulheres são-lhes impostos por razões erigidas por um sistema ideológico baseado na supremacia e autoridade masculinas.

Segundo Françoise Collin “existe uma construção social dos sexos e das suas relações e esta construção é organizada em termos de poder, através das diversas formas culturais privadas e públicas das sociedades” (Collin, 2005:20).

 

 “Grita Baixinho, para que os vizinhos não oiçam”

A denúncia da violência contra as mulheres foi uma das ações políticas do feminismo de segunda vaga (décadas de 1960/70). Scream quietly or the neighbours will hear foi o primeiro livro de denúncias dos maus-tratos dos homens sobre as mulheres dentro de suas casas, escrito em 1974 por Erin Pizzey uma das organizadoras do primeiro refúgio para mulheres vítimas de violência em Inglaterra: “Chiswick Women’s Aid”.

No livro estão 33 cartas e testemunhos das centenas que foram recebendo e que mostram a situação de desespero de muitas dessas mulheres, naquela época.

“Mulheres de todos os sectores sociais pediam ajuda, assim que sabiam que existia alguém que as podia ouvir e ajudar”, afirma Erin Pizzey, feminista, pioneira deste tipo de apoio às mulheres. Acrescenta ainda, “A violência na rua é tratada como um crime grave. Mas se os mesmos atos forem feitos dentro de casa são ignorados. Ninguém usualmente quer saber da brutalidade familiar; O castelo de um homem é a sua casa e esse castelo não pode ser escalado para proteger as mulheres e crianças prisioneiras nesse castelo”.

Os serviços sociais não davam resposta. À maioria das mulheres que a eles recorriam era-lhes dito que elas tinham casa, um marido que as mantinha e os serviços sociais não podiam fazer um julgamento moral de um casamento. A única solução era os serviços sociais visitarem o marido. Mas isso as mulheres não queriam com medo das represálias dos maridos. Existiam também assistentes sociais que lhes diziam que a violência exercida sobre elas era a prova de que os maridos as amavam. A polícia também revelava uma grande incompreensão em relação às mulheres batidas. Os hospitais tinham resistência em fazer relatórios sobre as provas físicas de violência o que impedia que as mulheres pudessem apresentar provas em tribunal.

De uma casa com quatro pequenos quartos (em 1971) a “Chiswick Women’s Aid” tinha, em 1974, cinco grandes casas que albergava 250 mulheres e crianças. A estrutura dessas casas era muito simplificada com decisões coletivas onde todas as mulheres participavam, assim como geriam as casas. Cedo entenderam que os pedidos de ajuda ultrapassavam os recursos existentes.

Entretanto foram-se formando grupos de ajuda em diversas cidades inglesas e em 1974, 38 grupos de mulheres vieram de toda a Inglaterra, inclusive de Dublin, para uma conferência cujas notícias foram divulgadas nos EUA, em Itália, na Holanda, Alemanha, Dinamarca e Canadá. Grupos de mulheres desses países vieram depois visitar os refúgios em Inglaterra.

A teorização do conceito de violência contra as mulheres nas relações conjugais feito pelas feministas de segunda vaga assenta na sua experiência concreta e na análise histórica da opressão e subordinação das mulheres, com fortes raízes numa sociedade patriarcal onde o domínio e o maior poder dos homens se estende a diversas áreas da sociedade. Tal como afirma Carol Hagemann-White (1998) citada por Maria José Magalhães (2007), a regularidade e extensão do fenómeno da violência contra as mulheres não emerge do lado negro de uma sociedade largamente civilizada, mas exactamente do seu centro, porque está enraizada na sociedade patriarcal.

Segundo Sofia Neves (2008), os movimentos feministas puseram a nu as situações de violência nos espaços e contextos de intimidade, como a família e as relações amorosas. “Tal permitiu a desmitologização dos espaços familiares e íntimos como lugares idílicos, aparentemente despovoados de histórias de coação e de violência” (Neves, 2008:162).

O contributo das feministas de segunda vaga para desocultar o fenómeno da violência contra as mulheres, em especial nas relações de intimidade, foi de enorme importância, não só em termos das ações realizadas como de contributos teóricos.

Em Portugal, as fragilidades dos feminismos de segunda vaga, aliadas a uma situação de conservadorismo da sociedade portuguesa, com origem nos 48 anos de ditadura, não permitiram que a violência sobre as mulheres surgisse na agenda política das décadas de 1970/80. Contudo, a denúncia de situações de violência contra as mulheres surgiram pela voz de alguns grupos feministas logo após a mudança para o regime democrático com o 25 de abril de 1974. Só em meados da década de 1990, a violência de género entra na agenda política do país.

 

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