Tolerâncias e intolerâncias num cosmos multicultural

As raízes das atuais atitudes xenófobas e discriminatórias, cuja importância vai aumentando num hemisfério norte cada vez mais rico (alvo natural das atenções das populações de um hemisfério sul cada vez mais pobre) remontam a tempos em que os pressupostos de sobrevivência grupal exigiam uma forte coesão interna, vista como oposição aos “outros”; encarados como estranhos e inimigos.

E se os imperativos de poder impregnam, desde sempre, as nossas teias de relações sociais (o que levou alguns socio-biólogos a apodar-nos de “animal de poder”), as relações entre grupos humanos, exprimem-se muitas vezes numa relação de confronto latente (atenuada, ou não, por mecanismos apaziguadores) susceptível de desencadear, como se sabe, conflitos ativos e violentos.

È a disputa do território onde se vive, se apascenta ou se cultiva. Do espaço vital onde se caça, se vivência, se cultua ou se transita.

Foram assim modelações comportamentais remotas, que pretendiam potenciar as condições de sobrevivência (desígnio último da existência de grupos sociais), que geraram, em última instância, as causas primordiais em que assentam as atuais atitudes de intolerância étnica ou cultural.

Vivemos, hoje, em condições socioeconómicas em que tais atitudes residuais de uma aplicação mais ou menos estrita das regras do darwinismo social, há muito deveriam ter sido arredadas.

Vivemos, afinal, numa sociedade que tende para a globalização, não só económica e comunicacional, mas ainda de valores e princípios, que tendem, cada vez mais, para universais e humanistas.

Mas, tender não é, necessariamente, chegar! Muito longe disso!

As diferenças étnicas subsistem, naturalmente: perenes em termos físicos e de mudança lenta em termos culturais. E assim irão continuar!

Afinal, a coexistência lado a lado de culturas, em sociedades cada vez mais pluriculturais (que as tão candentes questões migratórias colocam, hoje, em destaque), é ditada por imperativos de diferenciação económica entre os países (de um fosso económico cada vez maior) e facilidades de comunicação e deslocação planetária.

É portanto imperioso, aprendermos a viver com grupos e indivíduos portadores de valores e costumes manifestamente diferentes dos nossos.

E o primeiro aspeto que devemos ter em conta, é que se trata de uma problemática complexa. De complexas e remotas causas, de complexas motivações atuais e, naturalmente, de complexas, abrangentes e delicadas soluções.

As lógicas da intolerância

Comecemos por nos debruçar sobre as estruturas subjacentes às atitudes de intolerância, tanto na sua componente cognitiva (em grande parte estereotipada) até à social (não menos importante), passando, igualmente, por uma vertente emocional omnipresente e, frequentemente, culpabilizadora.

Na verdade, os estereótipos pressupõem uma simplificação da realidade social; simbolizando-a e tornando-a funcionalmente mais percetível e identificável.

Por exemplo, em termos de identificação dos grupos humanos, a estereotipação tende a vê-los (e a concebê-los) como de um só indivíduo se tratasse, sem reconhecer as, naturais diferenças (ou, mais rigorosamente as infinitas diferenças), das personalidades que os constituem.

O caso mais extremo desta categorização, pode ser exemplificado pelo pensamento dicotómico, isento de matizes e situações intermédias. São brancos ou pretos, bons ou maus, amigos ou inimigos, “nós” ou os “outros”.

É algo que perpassa a nossa cultura, radicando inclusive nas doutrinas religiosas (“ou é por mim ou contra mim”), favorecendo conceções maniqueístas que, embora constituindo heresias vencidas, continuam a influenciar a gnose cristã e, ainda hoje, assentam em conceções doutrinárias do conceito de bem e de mal, em termos mais ou menos absolutos.

Assim, um eventual estigma envolve todos os indivíduos do grupo considerado, não tendo em conta diferenças de idade, sexo, estatuto social, formação cultural ou quaisquer outras.

Correspondem a uma visão da realidade muitas vezes irracional, emotiva se quisermos, mas com que deparamos frequentemente; e que, de alguma forma, impregna o nosso quotidiano.

Esta categorização bipartida leva-nos, depois, a identificar os outros por uma perceção simplista e preconceituosa de um qualquer aspeto físico (principalmente) ou cultural, ignorando-se porém, de forma muitas vezes ostensiva, as restantes particularidades.

Tal atitude, discriminatória já, potencia-se depois, especialmente quando se funde com outros aspetos de carácter (por exemplo, quando o indivíduo pertence a um grupo com menor poder ou prestígio) ou emocionais: por exemplo, quando o mesmo ou o seu grupo, são vistos como uma ameaça.

Ensaiemos, então, um esboço de síntese caracterológica das razões psicossociais que podem levar a incrementar estas visões discriminatórias, aumentado o risco da intolerância face aos outros.

–   Centrar a nossa atenção nas diferenças entre nós e os outros, tende a exagerar tais diferenças em detrimento das semelhanças.

–  A eclosão de dois fatores considerados potencial ou efetivamente negativos (por exemplo a chegada de emigrantes e o incremento do consumo de droga, da criminalidade ou até do desemprego) tende a relacionar os mesmos num contexto linear de causa e efeito.

–   Os próprios estereótipos guiam a nossa interpretação da realidade e criam memórias seletivas dos acontecimentos, o que dificulta a sua superação. Digamos que, os dados positivos são considerados como exceção, os negativos como prova!

–              Finalmente, mesmo que venhamos a conhecer positivamente um qualquer indivíduo, o estereótipo impede que generalizemos essa apreciação. Será normalmente visto, mais uma vez, como exceção. Será, eventualmente, uma pessoa por quem temos estima, não porque… mas,… apesar de!

Na verdade, grande parte da nossa intolerância resulta de situações essencialmente emocionais que, embora possamos dizer não resistiriam a uma simples análise metodológica minimamente sustentada, dominam e persistem, numa irracionalidade muitas vezes cega, mas nem por isso menos eficaz!

A história remota e recente do povo Judeu (durante séculos “bode expiatório” de todas e mais algumas desgraças), numa Europa supostamente humanista, é bem paradigma, lamentável, de tal.

O “outro” e… nós

A isto podemos juntar a necessidade de afirmação do “nosso grupo” face ao “outro”, ao estranho; reforçando a coesão, mas igualmente o nosso estatuto interno e, obviamente a nossa efetiva integração no mesmo.

E aqui, podemos dizer que existem dois vetores que tendem a potenciar esta atitude: por um lado o reforço da nossa identidade construída assim por oposição aos outros, por outro, a criação do inimigo externo, tornado assim culpado de todos os males e mais alguns.

Situação que não deixa sequer, muitas vezes, emergir a natural empatia e solidariedade para com o marginalizado e discriminado.

Afinal, e por mais paradoxal que seja, acreditamos (queremos acreditar) que o outro é o único (ou principal) culpado da sua situação.

Deus ou a Natureza, determinismos ou fatalidades conjunturais, razões aleatórias ou pressupostos primevos, são vistos como causas explícitas e implícitas, que sustentam inferioridades técnicas ou económicas, políticas ou sociais, justificadas assim e, supostamente fundamentadas, na ausência de capacidades e/ou de conhecimentos considerados, próprios, de gente civilizada!

Entre outras coisas, isto descansa a nossa consciência!

São, portanto, atitudes deformadas da perceção da realidade que nos levam, muitas vezes, a encarar os “outros” como inferiores ou piores. Deformações que resultam de manifestas expressões de interesse, da solidariedade grupal, do desconhecimento, do horror à diferença, quantas vezes… do medo!

Atitudes preconceituosas que servem, frequentemente, para legitimar diferenças grupais de estatuto e poder. Foi, aliás, considerando os escravos e os “selvagens” como “naturalmente inferiores”, que se justificaram durante séculos, genocídios e expropriações de bens, de territórios e, até, da própria dignidade humana.

É portanto, preciso, que estejamos sensibilizados para a naturalidade da diferença, que o etnocentrismo tantas vezes subverte, implícita ou explicitamente.

Que vejamos na diferença não um obstáculo, mas um estímulo! Não uma contradição, mas um enriquecimento dos valores patrimoniais em presença!

Que percebamos, afinal, que o significado que damos à realidade não é a própria realidade mas, apenas, uma construção nossa: hoje, conjunturalmente, dominante!

Que as diferenças entre as culturas, que os diferentes grupos humanos veiculam, são profundamente influenciadas pelo contexto social e pela transitoriedade histórica. Por opções de progresso e por diferenças de oportunidade.

Que, por exemplo, já em África existiam grandes civilizações, capazes de erigir construções ciclópicas, consideradas hoje maravilhas do mundo, ainda os europeus corriam atrás de bisontes com machados de pedra!

Estaremos, então, dotados de condições psicossociais, de forma a fazermos consolidar identidades em desenvolvimento sem necessidade de o fazer contra quem quer que seja.

De forma a descobrir que somos, ao mesmo tempo, iguais e diferentes: homens e mulheres, europeus e africanos, cristãos e muçulmanos, “gadjés” e ciganos, indivíduos com ou sem “necessidades especiais”.

Vivendo a tolerância como valor, nunca como obrigação.

Mesmo que revestida do valorizado prestígio humanista contemporâneo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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