Por um feminismo socialista de “agência”

Indignação nas ruas.

Nunca como hoje se grita contra esta sociedade patriarcal, sexista e capitalista.

E as vozes que se levantam são muito jovens, de várias etnias e países de origem.

São mulheres imigrantes, negras, trabalhadoras precárias, estudantes.

São também antigas feministas que na década de 1960 e 1970 não conseguiram num Portugal muito marcado por silêncios de décadas de ditadura sair à rua. Uma única excepção: a manifestação no Parque Eduardo VII não compreendida pela maioria das esquerdas da época.

São mulheres de várias gerações com diferentes matizes ideológicas de esquerda.

São contudo mulheres dos grandes meios urbanos, sinal de que é preciso estender os protestos ao interior do país, como hoje se está a fazer com a primeira Marcha LGBTI+ em Viseu.

 Hoje esta “maré feminista” que se levanta contra o sexismo na justiça, contra o assassinato de Marielle Franco, contra as políticas trumpistas, contra o pesadelo que será o fascista Bolsonaro na presidência do Brasil, contra a violência sobre as mulheres, que conquistam o espaço da rua é um forte incentivo a pensarmos num feminismo socialista e anti-capitalista, que se constrói pela ação e pensamento de quem intervém sem agenda pré-definida.

 Trata-se de um feminismo socialista porque pretende mudar as estruturas do poder capitalista que configuram as desigualdades económicas e sociais, que condenam à pobreza e à exclusão social, que perpetuam ideologias patriarcais.

 Trata-se de um feminismo de agência porque o sujeito político do feminismo se constrói a partir da participação, enquanto ação colectiva, integrando “o público” e “o privado” na política, onde as estruturas de dominação e opressão são pensadas em termos de sexo, classe social, etnia, orientação/ identidade sexual e região de origem.

 Este novo sujeito político feminista aberto à diversidade de experiências e subjectividades será capaz de gerar novos significados para uma maior politização das lutas feministas. Esta filosofia feminista, integrando pesquisa, reflexão e ação política direta, exige que os feminismos não se reduzam a perspetivas teóricas esgrimidas apenas em meios académicos.

 Nesta corrente, confluem as posições de um marxismo renovado, as posições radicais, as críticas pós-modernas, que revelam abertura para uma reconfiguração de um sujeito feminista plural, as académicas ligadas ao ativismo, as ativistas feministas ligadas a uma visão de feminismo interligado com as agendas de outros movimentos sociais.

 Nesta nova corrente, as formas de ativismo são muito diversas podendo passar pela ação de grupos de pressão, pelo trabalho em rede a nível internacional e nacional, pela ligação entre estudos académicos e ativismo, pela participação em movimentos alterglobalização, pela intervenção cultural feminista, pela ligação a outros movimentos sociais (LGBTI+, ambientalista, anti-racista, de defesa dos e das imigrantes, das pessoas com incapacidades), ou até por ações de tipo mais radical, para além das “tradicionais” manifestações ou ações de rua. Existe, ainda nesta corrente, a incorporação de factores emancipatórios de transformação social e de luta contra a dominação e opressão sexista, com origem em masculinidades hegemónicas, que exercem o seu poder a diversos níveis.

 Uma corrente de feminismo de agência terá necessariamente de ser capaz de elaborar uma crítica ao Estado patriarcal capitalista, assente num confronto propositivo, ao mesmo tempo que não se demite de participar e elaborar propostas construtivas, sem, contudo, perder de vista que a institucionalização se consubstancia em amarras das nossas vidas, pensamentos e ações.

 E se o objetivo é estabelecer a agenda política, uma corrente de feminista de agência terá de evitar substituir-se à polifonia das vozes das mulheres, evitar o apelo missionário e salvítico de falarmos em vez das mulheres, de nos pensarmos em representação das mulheres.

 Pelo contrário, a construção de um sujeito heterogéneo mulheres tem como condição abrir espaços e tempos para diferentes grupos sociais de mulheres poderem ter voz, mas, sobretudo, poderem ser ouvidas nos seus próprios termos. Por isso, teremos de ter as vozes das trabalhadoras sexuais, das mulheres ciganas e de outras etnias, as vozes das mulheres das aldeias, das trabalhadoras cujas fábricas as deixam na rua, as vozes das sem-abrigo, de quem a especulação imobiliária colocou na rua, das trabalhadoras domésticas, das imigrantes, das que querem ter a sua orientação e identidade sexual sem serem sujeitas a atitudes homofóbicas. Um feminismo que não é só de elites, mas de todas estas mulheres. Porque elas não têm nada a perder, só têm a ganhar com um feminismo socialista e de agência.

 

 

 

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