Faleceu, em Roma, o Papa Francisco, argentino de nascença e o primeiro pontífice não europeu em mais de 1 200 anos, depois de Gregório III.
Francisco distinguiu-se ao longo dos seus 12 anos de mandato por declarações e ações que procuraram reformar a pesada e conservadora Igreja Católica, desde logo as práticas da Cúria Romana ancestralmente gerida de acordo com interesses próprios, financeiros e de conservação de poderes e influências, com corrupção à mistura.
Destacou-se na luta contra os abusos sexuais no seio da própria instituição que tendia a encobrir quem os praticava a todos os níveis da hierarquia religiosa. Agiu de forma decisiva, exigiu o fim do silêncio que rodeava estes abusos e promoveu o compromisso das Conferências Episcopais contra o encobrimento dos crimes sexuais. Seguindo essa linha de conduta, reformou o código penal do Vaticano e tornou mais rígidas as sanções sobre os membros da Igreja para este e outros tipos de crime.
Manteve o conservadorismo católico contra a união de pessoas do mesmo género enquanto “sacramento católico”, por ser um “ato contrário aos desígnios sagrados” como foi dito oficialmente pelo Vaticano. Contudo, Francisco contrariou a atitude tradicionalmente homofóbica da Igreja e penalizadora do divórcio, tendo aprovado, em 2023, a declaração Fiducia supplicans, que permitiu aos padres católicos “abençoarem” casais do mesmo sexo, casais heterossexuais não casados e casais divorciados civilmente recasados.
Nos posicionamentos do Papa Francisco foi marcante o combate às alterações climáticas e à destruição da biodiversidade, bem como a defesa da paz, em que o diálogo inter-religioso era um elemento importante.
A sua atitude, tanto contra o armamentismo como solução para a guerra na Ucrânia, o que o levou a ser acusado de pró-putinista por alguns setores políticos, como contra o genocídio palestiniano na Faixa de Gaza, tornaram-no um líder e um estadista que contrastava com a generalidade dos chefes de Estado “ocidentais” que apoiaram o prolongamento da guerra na Ucrânia e foram incapazes de uma atitude firme contra a brutal invasão israelita dos territórios palestinianos, como se tornou evidente com os vários dirigentes da União Europeia.
A carta encíclica Laudato Si’ (2015), sobre o cuidado com a “casa comum”, em que são feitas duras críticas à devastação ambiental e à falta de responsabilidade social do modelo económico vigente, é a mais ousada e oportuna manifestação do pensamento ecológico-cristão assinada por um papa, que chega a surpreender pela profundidade e por não hesitar na responsabilização do sistema refém de um modo de produção explorador da humanidade e da natureza. É referido que “as mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade”, apontando o dedo àqueles “que detêm mais recursos e poder económico ou político [que]parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas.”
Ligando sempre a degradação ambiental e ecológica às questões económicas e sociais, a Laudato Si’ entende que “os poderes económicos continuam a justificar o sistema mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. ”
Nessa mesma linha, contraria a ideia da “natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida”, como tem feito o capitalismo. “As razões, pelas quais um lugar se contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza”, conclui a carta encíclica do papa Francisco.
Adianta que “o cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do imediato, porque, quando se busca apenas um ganho económico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente com a sua preservação.” Manifesta forte preocupação com a reação internacional a este problema crucial, considerando que “a submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se na falência das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente.”
Em entrevista para o blog de Leonardo Boff, o sociólogo ecossocialista Michael Löwi considera a Laudato Si’ uma encíclica muito crítica do sistema económico, uma crítica radical que vai além da Teologia do Povo, uma encíclica antissistémica, inclusive anticapitalista, embora a palavra “capitalismo” não apareça”.
No entanto, diz, “o que falta na Laudato Si’ é indicar qual é o sujeito da mudança, porque o papa não fala sobre isso no documento”. Concorda com Francisco que “temos que mudar”, mas “quem irá implementar essa mudança”? Segundo Löwi, o próprio Francisco dá a resposta nas reuniões com os movimentos sociais, “muitos deles, muito radicais”. Vê que ali “o papa identifica claramente o sujeito da mudança, diz que eles são os que vão mudar as coisas, que têm que assumir essa tarefa e que a mudança está em suas mãos”, de acordo com a interpretação que Löwy faz do discurso de Francisco.
Na sua última comunicação Urbi et Orbi, no passado domingo, Francisco transmitiu uma mensagens de denúncia extensa e direta sobre o cenário global caracterizado pelo agravamento dos atuais conflitos armados, de Israel e Palestina à Ucrânia ou ao Sudão, pela corrida armamentista, particularmente numa Europa que coloca em causa direitos sociais, a violência contra civis e o desrespeito às liberdades fundamentais, como a liberdade religiosa, de pensamento e de expressão. Reforçou os apelos à paz mundial, à solidariedade entre os povos e à defesa da dignidade humana. “Gostaria que voltássemos a ter esperança e confiança nos outros”, escreveu no seu discurso Urbi et Orbi que teve de ser lido por um cardeal, referindo-se a um contexto global marcado pelos preparativos de guerra: “Quanto desejo de morte vemos todos os dias em tantos conflitos que ocorrem em diferentes partes do mundo! Quanta violência vemos com frequência também nas famílias, dirigida contra as mulheres ou as crianças! Quanto desprezo se sente por vezes em relação aos mais fracos, marginalizados e migrantes!”
Francisco esteve realmente na vanguarda, alguns passos à frente da Igreja. Conforme referiu Michael Löwy, os setores mais conservadores e reacionários da Igreja tudo tentaram fazer “para frear o papa e o expulsar o mais rápido possível”. Outro setor seguiu-o “pela a legitimidade que tinha”, havendo uma minoria que assumiu a sua radicalidade e realmente esteve disposta a pensar em termos de Laudato Si’”. O desaparecimento de Jorge Mario Bergoglio deixa um sentimento de vazio e constitui uma perda profunda para o lado progressista. Aguarda-se qual vai ser a alternativa que o colégio de cardeais encontrará para a sua sucessão.
Texto da Rede Ecossocialista.
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