O lítio e o golpe na Bolívia

A nacionalização dos recursos naturais e a utilização desses rendimentos para financiar o desenvolvimento social, tem desempenhado um papel importante na Bolívia. A taxa de pobreza diminuiu e a população boliviana tem conseguido melhorar os seus indicadores sociais. A atitude do governo de Evo Morales de controlo público sobre os recursos naturais produziu mais justiça social, mas igualmente uma resposta dura por parte das empresas transnacionais que detinham explorações mineiras bolivianas.

A Bolívia, um dos países mais empobrecidos da América Latina, quadruplicou o Produto Interno Bruto (PIB) desde o primeiro governo de Evo Morales, eleito em 2006, e mantém uma média de crescimento superior a 4,5%, com uma política redistributiva assinalável que teve como consequência a redução da pobreza de 38,2% para 15,2%. De acordo com o estudo do Center for Economic and Policy Research, a economia na Bolívia evoluiu duas vezes mais do que a média da América Latina e Caraíbas durante os anos de governação Evo Morales, com impactos sociais muito positivos. O investimento em programas sociais aumentou 80%, com especial incidência no apoio às famílias para incentivo à frequência escolar dos filhos, ao apoio à maternidade para diminuição da taxa de mortalidade materna e infantil, e garantia de condições económicas acima do limiar da pobreza aos mais idosos.

No início do ano, as prospeções num deserto salgado localizado a 3600 metros de altitude, concluíram que a Bolívia terá cerca de 70% das reservas mundiais de lítio, localizadas principalmente no Salar de Uyuni, uma enorme planície salgada com cerca de 10 mil quilómetros quadrados de superfície.

Esta descoberta coloca potencialmente a Bolívia como o maior fornecedor de lítio a nível mundial, metal que ganhou relevância central na indústria de acumuladores elétricos, nomeadamente para a nova vaga de transportes que substituirá os combustíveis fósseis pela eletricidade. Os apetites em relação aos recursos da Bolívia, das transnacionais da mineração e das empresas ligadas às novas tecnologias que dependem das baterias de lítio, aumentaram exponencialmente.

Morales garantiu o controlo público do lítio, no entanto, a complexidade técnica e o grande volume de investimento necessário para a separação do lítio implicam, nesta fase, cooperação com empresas estrangeiras. O presidente boliviano deixou claro que qualquer exploração do lítio teria de ser feita em conjunto com a empresa mineradora nacional da Bolívia, a Comibol, e com a Yacimentos de Litio Bolivianos (YLB), empresa nacional de lítio, como parceiros iguais. Era nessa perspetiva que a China e a empresa boliviana de lítio estavam a negociar um acordo com o estabelecimento de um novo pacto social que outras empresas, como a ACI Systems Alemania, consideravam inaceitável. Também a Tesla (EUA) e a Pure Energy Minerals (Canadá) mostraram grande interesse em ter uma participação direta no lítio boliviano, mas não estavam disponíveis para um acordo que levasse em consideração os parâmetros estabelecidos pelo governo de Morales.

Vários analistas internacionais relacionam a “urgência” do golpe contra Evo Morales com esta recente descoberta na Bolívia de recursos de lítio tão importantes que poderão vir a ter um papel estratégico no processo de reprodução e acumulação do “capitalismo verde”. Na sequência de vários dias de distúrbios provocados pela extrema-direita com apoios dentro das forças policiais, o presidente boliviano foi confrontado com um ultimato do alto comando militar com uma “sugestão” para que saísse do cargo. No dia 10 de novembro, Evo Morales anunciou que não tinha condições para se manter na presidência da República e renunciou ao cargo.

Os chefes das Forças Armadas bolivianas forçaram Morales a renunciar após uma onda de violência contra os apoiantes do governo progressista e, em particular, a população indígena e camponesa do país. Foi notório o envolvimento de forças policiais com gangues de direita para prenderem partidários do MAS (partido de Evo Morales) nos bairros mais pobres das cidades bolivianas. Entretanto, Jeanine Áñez, uma supremacista branca que ocupava uma das vice-presidências do Parlamento boliviano, autoproclamou-se presidente da Bolívia, ao arrepio da Constituição e perante um Parlamento sem quórum.

É importante lembrar que a Bolívia tem sofrido uma série de golpes de Estado ao longo da sua história, frequentemente conduzidos pelos militares e pela oligarquia económica e financeira ligada às mineradoras transnacionais. No início, eram empresas de estanho, mas o estanho deixou de ser o principal alvo dos interesses do capital transnacional na Bolívia.

Agora, o alvo principal são os seus vastos depósitos de lítio, cruciais na tecnologia da mobilidade elétrica, onde todo o setor automóvel já está a investir. A Bolívia, que tem procurado resistir às ofensivas dos interesses exploradores das transnacionais da mineração, foi agora apanhada no fogo cruzado da disputa dos EUA com a China. O golpe contra Evo Morales tem a guerra comercial EUA/China e os interesses das transnacionais por de trás, acicatados pela corrida ao lítio e pela expetativa de que a Bolívia poderá vir a ser transformada a prazo numa espécie de Arábia Saudita do lítio. Após o golpe, as ações da Tesla subiram astronomicamente.

Em La Paz, tudo indica que este combate ainda não acabou. Milhares de apoiantes de Evo Morales estão nas ruas contra a violência e o racismo do golpe de Estado. Cabe às forças democráticas e progressistas prestar solidariedade internacional aos que resistem ao golpe, aos movimentos progressistas e indígenas bolivianos que lutam por justiça e soberania, contra a ofensiva neoliberal e da extrema-direita.

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