O HOMEM como PRISIONEIRO ESTILHAÇADO

  • Prefácio de Mário Tomé para o livro «ESTADO SOCIAL REAL», de António Pedro Dores, edição RCP Edições

 

O Estado Social como plano estratégico da social-democracia   em pleno boom económico da Europa que, quase sarcasticamente se seguiu ao Holocausto e à II Guerra Mundial, traduziu o contrato social decorrente da época dourada do Plano Marshall e da NATO.

O Plano Marshall, garantiu a reconstrução da Europa e recomposição do capital enquanto sujeito histórico global.

A era dos extremos foi mais um símbolo da doutrina do choque (Noami Klein) que iria fazer furor até aos dias de hoje com outros executores: os povos como cobaias e carne para canhão, a que se chama poeticamente estados párias,  mas com os mesmos promotores, as potências imperialistas a que se associaram então a Europa e a URSS.

A NATO assegurou a unidade da Europa sob comando dos EUA e o tampão à pseudo ameaça da URSS que mais não foi (assim como hoje a Rússia de Putin e a China ) do que um contraponto no grande concerto mundial regido pelo capital nas suas vertentes virtuosas de destruição da natureza,  fabricação de armamento e desenvolvimento tecnológico sem precedentes.

O Estado Social foi a resposta necessária e possível do capital à quase liquidação do exército de reserva do proletariado devastado pela hecatombe da guerra, à ameaça, não do comunismo soviético que já não passava de uma espécie de fordismo totalitário –  economia capitalista gerida com o suporte do Estado – mas da mobilização do proletariado guiado pelo sonho de um mundo anticapitalista cuja concretização imaginava na URSS e, finalmente, pela Europa inundada pelos dólares do Plano Marshall.

O Estado Social traduziu-se no apoderamento “civilizacional” da Europa pelos EUA: o «rouler plus vite, laver plus blanc» de Kristine Ross.

O Estado Social foi uma espécie de metáfora do bem estar possível  para os trabalhadores. E através dele foi-se impondo a ideia de que o Estado faz todos os possíveis para, sensatamente (talvez a ideia mais mortífera nos tempos que correm) gerir a contradição capital trabalho a bem de todos; até que na crise de 1973, terminaram os “30 anos dourados” dando lugar ao ascenso do neoliberalismo Taetchereaganiano e à dissolução de todos os bons costumes do Estado de Direito Democrático e à relativização acelerada do já discreto respeito pelos direitos humanos.

A velha e produtiva norma do “para quem é bacalhau basta” – de quando o bacalhau era a pataco! – continua a ser o guia da governação liberal e social-liberal.

A grande ilusão que o Estado Social promove – e que é a trave mestra da ideologia sufocante disseminada pelo capital e seus assessores políticos – mesmo depois do fim da base material que permitiu a social-democracia (o que desculpa, até certo ponto, uma certa condescendência com a miséria humana dos que ainda a invocam quando apenas se dedicam a lubrificar a porta giratória) é a de que está, em nome da sociedade, a garantir tudo o que é devido se a «vossa crença e a vossa fé nos ajudar e não nos der azo a usar a violência democrática que em última instância assegura as condições de estabilidade para o bem-estar de todos; e todas, agora que as mulheres já têm quotas. A democracia é o nosso totem e o mercado, devidamente regulado por um Estado que é do povo soberano, o seu garante qualificado»

O gigantesco esforço a que o Estado de Direito Democrático é obrigado  para assegurar o harmonioso desenvolvimento das potencialidades do capital predador (é uma qualificação essencial, não uma discriminação) constitui a base da organização da sociedade moderna.

Esse esforço tem como arma principal, mais ainda que do que a repressão institucional, logo exercida pela vontade do povo soberano, não é bom esquecer, a ideologia e os seus elementos estruturantes: escola, universidade, a história contada pelos vencedores, as ciências sociais, a comunicação social e, até, as próprias ciências da natureza e as ciências exactas.

Jean Rostand, o grande biólogo francês da primeira metade do século passado, na sua polémica com os biólogos soviéticos submetidos à ciência oficial proclamada por Lisenko, com a ideologia estalinista  no comando, ele próprio reconhece que a ciência ocidental também é afectada pela ideologia embora em menor grau.

O totalitarismo não é uma qualidade exclusiva das sociedades ditas comunistas ou fascistas. O progresso capitalista gerador de retrocesso social, o crescimento como base ontológica do funcionamento do capital e gerador da crise estrutural que é hoje a sua condição inapelável, a caminhada para a necessidade de unificação das ciências para o seu desenvolvimento, o controlo político absoluto das grandes conquistas tecnológicas e científicas, da inteligência artificial, conduzem para a globalização e centralização do poder e para a necessidade do controlo absoluto da resistência dos trabalhadores, dos povos, à sua exclusão do trabalho substituídos pelas máquinas.

A grande contradição do capitalismo vai, está já a, situar-se neste campo: o trabalho humano como gerador de mais-valia, logo do lucro, vai perder o seu papel de mediador social e a produtividade crescente vai depender cada vez mais exclusivamente da máquina “pensante” (talvez sem aspas) e a óbvia necessidade da redução do tempo de trabalho humano entra em confronto com a taxa de lucro o elemento estruturante do capital.

Karl Marx já tinha colocado a baixa tendencial da taxa de lucro como uma das características do funcionamento do capital provocando a cada vez maior frequência das crises cíclicas e gerando a crise estrutural de que não mais vai conseguir libertar-se.

O trabalho como elemento estruturante do capital e não como opositor que o vai superar é uma das conclusões para que o próprio Marx abriu caminho e que tem sido escamoteado pelos vários marxismos (Postone)

A sociedade capitalista tem vindo, e agora cada vez mais estruturalmente, com meios cada vez mais sofisticados a organizar-se para o que aí está e o que aí vem.

A repressão dos corpos policiais e militares, que cria má impressão, é antecedida e evitada se possível pela repressão genérica, a repressão que a sociedade em geral, nomeadamente os que são suas vítimas aceitam como beneficiários.

Tal repressão, que vai da escola à prisão, mais exactamente a sociedade alienante e, portanto, prisão global, servindo-se das conclusões das ciências sociais e naturais, elas próprias instrumento da ideologia dominante, incorpora, ela própria, um vasto e inesgotável campo para a recomposição do capital.

Tal como com a própria guerra, o capital opera de mãos livres, para a recuperação da taxa de lucro ou para tentar mantê-la através dos produtos materiais ou imateriais que naturalizam os efeitos devastadores do controlo e da exclusão, da alienação dos seres humanos dando-lhes mais razões, cada vez mais sofisticadas, para terem fé nas potencialidades da natureza humana e no regime democrático que, não sendo infalível é o melhor que se pode arranjar: se todos colaborarem, vítimas, 99% e verdugos, 1%.

Claro que os números são de tal forma excessivos que mais vale não acreditar neles!

António Pedro Dores neste seu ensaio, traça um retrato implacável da sociedade capitalista em que o totalitarismo essencial não pode ser escamoteado pela avocação do Estado Democrático de Direito, ele próprio o instrumento mais sofisticado desse totalitarismo que se impõe não na chamada superestrutura, também através dela, claro, mas no próprio funcionamento  da sociedade sujeita à alienação do trabalho, o grande mediador social, e às necessidades individuais e sociais que são já criação do próprio crescimento, tendente para o infinito, do próprio capital.

O mercado, supostamente regulado, é tido como a garantia da democracia: logo, a autorregulação das empresas globais senhoras do mercado, é a garantia suprema da democracia.

O mundo é um vasto campo de intervenção global das transnacionais e a humanidade uma massa para experimentação de soluções carimbadas pelo Prémio Nobel, os Direitos Humanos são violados antes de serem reclamados, a sua violação é aceite e até desejada  desde que assegure uma sensação de segurança, a discriminação e a exclusão são aceites e a sua culpa é atribuída às próprias vítimas, os crimes do Estado e suas instituições contra os direitos dos cidadãos são classificados como actos necessários à sua defesa, o ser humano está prisioneiro de si próprio, alienado e incapaz de se libertar da pressão da ideologia que não só lhe obscurece a razão mas o faz rebelar-se contra os seus próprios sentimentos e emoções.

A sociologia e a psiquiatria tentam dar resposta à devastação social e ao estilhaçamento do indivíduo. Elas próprias ignorantes, ou assobiando para o lado, quanto à própria alienação ideológica dos seus métodos e ao papel que têm na reprodução e agravamento da sociedade a que pretendem dar sentido.

A sociedade, placenta insubstituível para a existência e desenvolvimento do ser humano, enquanto organizada pelo capital, o sujeito histórico hoje determinante, não tem sentido humano. Ela impede a humanidade de procurar consequentemente o ideal da realização da totalidade humana para cada indivíduo, alcançando a entrada no ciclo infinito da natureza (Karl Marx)

O trabalho de António Pedro Dores é de uma integridade, inteligência e dureza em si mesmas libertadoras, mostrando-nos uma radiografia demolidora da sociedade moderna capitalista e da sua ideologia do capital fetichisado cuja alienação global é revolvida até às entranhas.

Dela ressalta, desde a mais recôndita vilosidade das vísceras revolvidas, a necessidade absoluta de uma revolução social que, nos tempos de hoje, é potenciada pela entropia acelerada do planeta que ameaça ser fatal.

“A revolução não é apenas necessária por ser o único meio  de derrotar a classe dominante, ela é-o também porque somente a revolução permitirá à classe que derruba a outra varrer toda a podridão do velho sistema que se lhe cola às costas (colle aprés), e tornar-se apta para fundar a sociedade em novas bases” (Karl Marx).,

Portanto, António Pedro Dores dá-nos, como ninguém ainda hoje se dispôs ou ousou fazer na nossa Universidade, uma base irrecusável e, ouso dizê-lo, dificilmente  refutável, para sustentar armar todos os trabalhadores, nomeadamente os da ciência, do ensino e das artes, para irem  construindo, na resistência à política e ideologia dominantes, desde já  bases políticas, sociais e materiais para a revolução social que, todavia, não esperará por nós.

Apenas será bom para todos se estivermos lúcidos e preparados.

 

 

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