Há 7 anos, num dia 24 de abril, a notícia sobressalta-nos: “O eurodeputado Miguel Portas faleceu esta terça-feira por volta das 18 horas, no Hospital ZNA Middelheim, em Antuérpia.”
Recordamo-lo e, neste dia 24, o melhor mesmo é poder ler o Miguel. Folheando e relendo, encontrámos “Esquerda e governabilidade”, escrito em março de 2001.
Começa por comentar as voltas de Guterres no governo em que foi primeiro-ministro e que acaba na famosa “via limiana”. As intenções do PS de “união de esquerda” ficaram esclarecidas.
A última parte, é sobre a experiência de Lisboa que se inicia com Jorge Sampaio e a conjugação de forças à esquerda numa candidatura autárquica. A evolução das coisas (“sobra, em suma, um mero projeto de poder, onde antes existira a promessa de uma nova geração de políticas urbanas”) leva à preocupação da “absorção da esquerda pelo centro”, em vez de “uma viragem à esquerda”.
Com a sua sensibilidade estética e o manifesto prazer da escrita que revela (dito por Eduardo Prado Coelho no prefácio) aqui fica essa parte do texto do Miguel:
Vale a pena passar em revista a experiência de Lisboa. Ela aglutinou vontades que não queriam apenas acabar com a “era Abecassis”, mas erguer um projecto para a capital. Não se tratou de eleger Mário Soares contra Freitas do Amaral ou António Guterres contra Cavaco Silva. Tratou-se de uma alternativa, no sentido mais nobre do termo. PCP e PS foram decisivos, mas não esgotaram a proposta nem as capacidades de participação. A dinâmica que então emergiu esteve longe de ser simplesmente “melhorista”. Ali nasceu um projecto para a transformação da cidade profundamente marcado à esquerda. Há doze anos, convém recordar, Jorge Sampaio foi o primeiro dirigente socialista a quebrar o tabú do interdito comunista. E o PCP, com 27 por cento dos votos, era a primeira força partidária da capital…
Porque é importante a experiência de Lisboa para o debate sobre os caminhos de esquerda?
Desde logo porque demonstra que a “governabilidade” não pode constituir um fim em si mesmo. A “governabilidade” só faz sentido enquanto instrumento de um processo social, cultural e político de transformação. Sem este horizonte, sem esta força propulsora, qualquer “governabilidade” tende a fazer sua a ordem actual das coisas e a esvair-se no concerto dos aparelhos. E nessa música, vence sempre a lei do mais forte, ou seja, o “abraço do urso”.
A aproximação entre aquilo que se designou por “centro-esquerda” e o universo plural do que mora à sua esquerda, há-de ser necessário para que o rotativismo ao centro não continue a corroer a política portuguesa. Mas até lá não há atalhos. A aproximação de uma esquerda programaticamente fragilizada e eleitoralmente debilitada ao mundo político da “governabilidade”, não conduz a uma “viragem à esquerda” mas à absorção da esquerda pelo centro.
Pelo contrário, uma esquerda plural forte, programaticamente preparada para assumir responsabilidades, pode provocar uma deslocação geral do país para a esquerda. Esta esquerda de alternativa ainda não existe e é para ela que vale a pena trabalhar. No PS, na CDU, no BE e fora de qualquer destas formações, existem energias para convergir, suprir debilidades de projecto, de ausência de caminho em comum e dificuldades de renovação geracional e cultural. Aproximemos estas diferenças e encontremos para elas um lugar de encontro, o da oposição. Reconstruindo os laços entre a política e a vida, esta alternativa pode crescer. Seduzida pelos gabinetes, será engolida sem honra nem glória.
(Miguel Portas (2002) “Esquerda e governabilidade” in E o resto é paisagem. Ed. Dom Quixote)
Foto: Arquivo esquerda.net