Museu musa da intervenção, corpo fronteiriço

O dia 3 de abril raiava com as frases Twenty years ago, museums would firmly state their duty to be neutral. Society changes, some museums change too. Quem o dizia era o ICOM Europe, o “conselheiro” dos museus da Europa. A entidade internacional que lança os debates e recomenda as boas-práticas aos museus dava conta neste dia, acompanhando com atenção as notícias, de que há museus que estão a reagir e a envolver-se nos temas do mundo e das vidas das pessoas.

Nesta publicação o ICOM-Europe trazia a público, então, um artigo do The Art Newspapper onde se destacava (entre outros exemplos de intervenção, como o do MoMA ou do Guggenheim) a direção de Laura Raicovich no museu de Queens (NY) exatamente por se assumir política, não neutral.

Bem sabemos da génese dos museus, parcial, segmentária. Poderíamos, talvez, resumir a história dos museus à sua proveniência de coleções privadas e de gabinetes de curiosidades apanágio de certos indivíduos privilegiados, endinheirados, excêntricos; gabinetes que são depois empolados para museus com discursos nacionais e imperiais e usados como símbolo, como marcas de poder. Escritos na sua maioria por homens, brancos, ricos (com vírgulas entre si ou não) e para uma elite igualmente branca, os museus eram arautos endeusados e intocáveis do saber, do belo, do poder.

Hoje os museus são chamados a ser as musas carnais da intervenção: corpos fronteiriços e transfronteiriços, orgânicos, rizomáticos. Os museus de hoje querem-se livres e deixam-se reescrever, questionam-se, incluem-se nos dilemas do tempo presente.

Talvez tenham sido os museus de comunidade que ensinaram aos demais as boas-práticas, que mostraram que o museu pertence a todos os que afinal habitam aquela cidade, aquela vila, aquele bairro, aquele país, o mundo! E que, afinal, pode ser o lugar onde as pessoas encontram algo da sua história, mas sobretudo onde se encontram com os seus e com as suas próprias estórias, em revelações de identidade num lugar de achado.

O artigo partilhado pelo ICOM revelava, de forma não neutral, um exemplo extraordinário de luta pela diferença e pela diversidade de dentro dos EUA. Mas poderíamos, de forma também não neutral, olhar para o Museu da Maré, no Rio de Janeiro, e para o seu mais recente núcleo expositivo dedicado a Marielle. Ou para os museus que há uns anos nem poderiam dizer que o eram, como o Museu das Remoções, projeto museológico que decorreu do ativismo popular contra as remoções das casas e dos moradores da Vila Autódromo na altura da construção do parque olímpico no Rio de Janeiro.

Estes e outros exemplos vêm comprovar que uma nova museologia, engajada, plena de gente e de vida(s), é possível, todos os dias, em novos casos que proliferam, resilientes, ora em museus locais ora em museus nacionais que desejam contar as outras histórias, com outros protagonistas, aquelas que nunca foram contadas, onde há outras cores além do branco, onde há escravos e escravas, operários e operárias, e um sem fim de gente que importa.

O ICOM-Europe, nesta partilha das notícias do “mundo dos museus”, lança o desafio de se pensar e discutir sobre a presença e urgência de museus interventivos que rejeitem o campo da neutralidade e da ambivalência social: museus de todos e para todos, sem medo de participar, sem pejo em tomar posição.

Novos museus são precisos, sem muros, mesclados com os assuntos locais e com os temas globais, museus multivocais, ilimitados ou pelo menos de fronteiras tão amplas e difusas que não se possam policiar: museus de liberdade e de ação. Desejam-se novos museus com consciência de si mesmos que ousem idealizar futuros, cenários imaginados, novas hipóteses de sociedade.

 

Texto revisto e emendado a 1 de maio de 2018

Foto: pedrosimoes7 on Visual Hunt

2 comentários em “Museu musa da intervenção, corpo fronteiriço”

  1. Que texto bonito, inspirador, duro como deve ser , mas com a poesia da convicção!
    Como canta Gil “a fé não costuma faiá…”

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  2. Excelente texto, tanto na forma, bem cuidada e interessante; como no seu conteúdo, progressista e a olhar para o futuro. Ideias ! Ideias !

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