Mais proximidade social!

 “Mais distanciamento social!”

Desde há quase um ano e meio que, oriundo de jornalistas, de comentadores, de autoridades, de políticos, na televisão, na rádio, nos jornais, nas redes sociais, em tom mais ou menos imperativo, ouvimos e lemos este apelo.

Dado o contexto em que é expresso, quase todos o aceitamos assim formulado como sendo a uma das medidas básicas de comportamento individual consideradas pelas autoridades de saúde como preventivas do contágio pelo novo coronavírus (sars-cov-2): a manutenção de um mínimo de distanciamento físico (a Direcção-Geral de Saúde e a Organização Mundial de Saúde preconizam 2 metros) entre as pessoas em situações de relacionamento pessoal que não as da habitual comunhão de habitação. Ou, suprindo-o se este distanciamento for impossível em função do contexto, o uso adequado de equipamento de protecção individual, como regra, a máscara apropriada.

É certo que sob o ponto de vista psicossociológico, da proxémica, sempre algo há de social no maior ou menor distanciamento ou proximidade física que, estrutural ou conjunturalmente, as pessoas adoptam ou passam a adoptar por razões culturais, ambientais e sociais. O que, aliás, não terá deixado de estar relacionado com as diferenciadas opções políticas entre regiões e mesmo países do mundo (exemplos disso podem ter sido os países nórdicos, em contraponto com a África, Índia ou países latinos) nas medidas mais gerais de combate à pandemia e respectiva maior ou menor aceitação ou resistência social à adopção dessas medidas. Inclusive, mesmo a um nível estritamente pessoal, como foi observado nos recentes períodos de confinamento, a maior proximidade física prolongada pode ser factor mais ou menos importante de maior distanciamento social e, mesmo, para além de outras consequências psicossociais nesse ou noutros sentidos, desencadear e acentuar a crispação relacional entre as pessoas na própria família.

De qualquer modo, de tão praticamente óbvia (ainda) ser, pelo menos por agora, a necessidade do referido distanciamento físico (ainda que expresso como “distanciamento social”) prescrito pelas autoridades de saúde quase ninguém põe em causa a pertinência de tal apelo.

Mas, mais rigorosamente, não será já excessivo, e desde há muito antes da pandemia, o que, em vários domínios e contextos, por aí temos de efectivo, objectivo, distanciamento social?

– Distanciamento social quando, por mais perto fisicamente que os ricos estejam dos pobres, crescem, agravando-se durante a pandemia, as desigualdades económicas e sociais, patentes quer na realidade nua e crua do quotidiano das condições de vida, de trabalho e de dignidade humana de muita gente, quer em evidências científicas de maior espectro e dimensão – como é, por exemplo, o último relatório (2020/2021) da Amnistia Internacional (O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”);

– Distanciamento social quando há uma desigualdade enorme, um “abuso de direitos humanos”, na distribuição das vacinas covid-19 em função do poder económico de cada país, como, há muito, têm vindo a condenar o Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, corroborado pelo Director-Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo próprio Papa;

– Distanciamento social quando, num problema de saúde pública de nível global e cuja solução sanitária só resulta eficaz se adoptada e aplicada de forma coesa, harmonizada e global, por mais fracos que sejam os recursos económicos dos países, as grandes empresas farmacêuticas produtoras da vacina, com a conivência objectiva (por acção ou omissão) dos poderes político-económicos internacionais, europeus e nacionais, não libertam as patentes de produção e comercialização que possibilitem mais fácil e rapidamente apoiar esses países na vacinação das pessoas;

– Distanciamento social quando, não podendo as pessoas estarem dia a dia mais próximas fisicamente (no próprio lar, em comunhão de mesa e habitação), não só (já) não têm qualquer ligação afectiva e emocional como, pior, se agridem física ou verbalmente, como tem acontecido nos crescentes casos de violência doméstica;

– Distanciamento social quando, por mais próximas que estejam das vítimas de tais condições, há pessoas indiferentes, ou pelo menos passivas, perante as condições de vida dos sem-abrigo, das crianças e pessoas idosas maltratadas, perante quem sofre por agressão física, verbal ou de qualquer outra ordem em situações de racismo ou xenofobia, violência doméstica ou assédio moral no trabalho;

– Distanciamento social quando, no desemprego, as pessoas, por mais próximas que estejam diariamente de quaisquer outras, estão socialmente distanciadas, marginalizadas na, da e pela sociedade;

– Distanciamento social quando, no trabalho, as novas formas de emprego precário impedem ou interrompem abruptamente relações sociais iniciadas ou mesmo já mais ou menos consolidadas no ou pelo trabalho;

-Distanciamento social quando, no trabalho, por mais próximos fisicamente que os empregadores e os representantes destes estejam dos trabalhadores sob a sua autoridade e organização, por via dos modelos e práticas empresariais e de gestão, bem como pela continuada desregulamentação e desregulação dos seus direitos laborais, estes estão cada vez mais fragilizados e sem suporte social nas relações de trabalho;

– Distanciamento social quando, no trabalho, a organização do trabalho e a gestão inibe ou até nem permite entre os trabalhadores, por mais próximos fisicamente que estes estejam, qualquer sociabilidade que não seja estritamente produtiva(ista). Por exemplo, quando numa fábrica, num escritório ou num call center, os trabalhadores estão apinhados a centímetros uns dos outros e, por tão intensificado e controlado (presencial ou tecnologicamente) ser o seu trabalho, não têm tempo (nem autorização) para sequer se falarem, tão só se entreolharem entre si;

– Distanciamento social quando a gestão e a organização do trabalho, designadamente de organização e duração dos tempos de trabalho, separando as pessoas uma das outras por meio de turnos e rotações de horários de trabalho, as distancia socialmente no trabalho, bem como, porque “o trabalho tem um braço longo”, da e na família;

– Distanciamento social quando, na sua própria casa, os trabalhadores, a centímetros dos seus familiares, poucos minutos têm para destes se não alhearem por, de manhã à noite, de facto, lhes ser impossibilitado “desligar” do teletrabalho sobre-intensificado em volume, ritmo e duração rigorosamente (tele) controlados.

– Distanciamento social quando, no trabalho, por vários processos e formas, é fomentada a individualização das relações de emprego e de trabalho, bem como a competição desenfreada entre os trabalhadores, não só inibindo nestes o sentido de apoio e entreajuda como, mais, potenciando anuviamento (distanciamento) socio-laboral susceptível de gerar, entre colegas de trabalho que não podem todos os dias estarem mais próximos fisicamente, situações de assédio moral e, até, de violência no trabalho;

– Distanciamento social quando nos locais de trabalho, por maior que seja a proximidade física entre os empregadores (ou seus representantes) e os trabalhadores (assim devendo conhecer melhor do que ninguém as condições em que estes trabalham), aqueles se alheiam de garantir a estes, nos locais de trabalho, condições de trabalho dignas, concretamente, que lhes permitam fazer face à natureza do trabalho que (como, onde, quanto, quando…) realizam, manter a dignidade e, sobretudo, preservar não “apenas” a vida mas a integridade física e a saúde.

Em geral mas pelo menos nestes domínios e contextos, o que urge é, não distanciamento social mas (mais) proximidade social.

– Proximidade social quando, a dezenas ou centenas de metros mas também a centenas ou milhares de quilómetros de distância, falamos ou nos relacionamos por qualquer forma, se possível apoiamos e ajudamos, familiares, amigos ou seja quem for em situações que lhes são mais difíceis, inclusive as relacionadas com a actual situação sanitária;

– Proximidade social quando, e especialmente agora no contexto da pandemia, por maior que seja o distanciamento físico, na nossa comunidade ou mesmo territorialmente muito para além dela, nos envolvemos em acções ou instituições que visam o apoio e ajuda a pessoas com maior vulnerabilidade de qualquer ordem, inclusive aquelas pessoas que nem sequer conhecemos pessoalmente;

– Proximidade social quando, por maior que seja o distanciamento físico entre si, os trabalhadores se organizam e entreajudam por qualquer meio para resolverem colectivamente os seus problemas de emprego e de condições de trabalho;

– Proximidade social quando, nos locais de trabalho, nas empresas, na administração pública e noutras organizações onde é realizado trabalho, a gestão e organização empresarial e particularmente do trabalho fomenta e alimenta uma cultura e prática de diálogo social com os trabalhadores e seus representantes, ou seja, de consulta e participação, de promoção da entre-ajuda e cooperação com uma referência de trabalho digno.

A Saúde, a saúde pública e a saúde individual que daquela é indissociável, como noutro local já se escreveu[1], é algo eminentemente social. A nossa condição de saúde sempre em algo (se não sanitariamente, pelo “menos” económica ou socialmente) se repercute nos Outros. E vice-versa, sempre em algo se projecta em nós a condição de saúde dos Outros.

Se há circunstâncias onde isso é mais evidente é, por maioria de razão e até por definição, numa situação de pandemia.

Por isso, é também especialmente nestas circunstâncias que, por mais paradoxal com o tal apelo ao “distanciamento social” que isso pareça, mais se impõe proximidade social. Proximidade social, no sentido de que mais necessário é o suporte social dos outros, inclusive como também factor de prevenção dos riscos (inclusive dos que, directa ou indirectamente, associados à pandemia) para a saúde, ao nível individual e público.

Ao mesmo tempo, é igualmente nestas circunstâncias que, por mais contraditório que isso se julgue, prevenir o risco de contágio mantendo a distância física preconizada pelas autoridades de saúde como medida de protecção da saúde de cada um e a dos Outros, é, afinal, no sentido do que precede, um acto, não de distanciamento social mas de objectiva proximidade social.

Mais distanciamento social? Não. Mais proximidade social!

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[1] “A saúde como condição de confiança e a confiança como condição de saúde” – Público, 16/04/2021 – https://www.publico.pt/2021/04/16/opiniao/noticia/saude-condicao-confianca-confianca-condicao-saude-1958776

 

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