História e revoluções no século XX, flexibilidade do trabalho e segurança dos lucros

Este ano celebram-se os 100 anos da revolução alemã, os 100 anos da revolução húngara, os 70 da revolução chinesa, os 60 da revolução cubana, os 40 da revolução iraniana, os 40 da revolução na Nicarágua, e para quem, como eu, considera a queda do Muro e Tiananmen dois movimentos revolucionários (porque em história não se confundem processos com resultados), celebram-se os 30 anos do começo do fim da URSS e das esperanças numa China com menos opressão política. Todas estas datas têm vários factos em comum, mas dois deles são fulcrais: a força das massas contra o Estado, criando uma esperança única ao nível das mudanças no século XX, e a derrota destas forças em regimes políticos que se consolidaram contra elas. Negar o papel das revoluções no século XX é negar que a par do lucro, força motriz das nossas sociedades capitalistas, há uma outra força que determinou os nossos destinos como a lei da gravidade: a ideia de que podemos viver num mundo mais livre e igualitário.

Essa ideia tem poderosos inimigos. Passam este ano 90 anos da crise de 1929, da vitória franquista na guerra civil espanhola e do início da II Guerra Mundial – o maior genocídio da história da humanidade.

Em 1870 é apresentado no parlamento inglês, por ordem de Sua Majestade, o Relatório sobre as Condições das Classes Trabalhadoras dos Países Estrangeiros [1]. Um grupo de agentes consulares e diplomáticos envia de várias partes do mundo um relatório detalhado sobre as condições laborais que iriam os capitalistas ingleses encontrar em cada país, desde Portugal ao Império Otomano, dos EUA à Grécia. Nele podem ler-se o número de pessoas disponíveis para trabalhar, a sua formação média, tamanho da família, hábitos alimentares, habitação, higiene, quais os trabalhos que podem ser ocupados por mulheres ou crianças.

No Império Otomano há uma descrição detalhada das organizações de artesãos, quanto ganham por categoria; o relatório da região de Valência, em Espanha, explica, além do número, que ganham mais no verão do que no inverno, provavelmente por escassez de força de trabalho disponível, já que estão a trabalhar nas próprias colheitas e hortas. O de Portugal recomenda os trabalhadores portugueses porque não bebem muito ao domingo e por isso trabalham à segunda-feira. E porque “se contentam com pouco”.
Aquilo que hoje seria um moderno sistema de gestão de recursos humanos, realizado provavelmente por um estudo de uma consultora internacional, era já profundamente detalhado na Europa industrializada oitocentista: é a visão do continente europeu como um simples mercado de trabalho. Quantos são, quanto ganham, o que sabem fazer, como é que vivem, quanto se pode pagar? E quanto se pode não pagar [2].

Em 1880 La Revue Socialiste publica outro inquérito, o Inquérito Operário, este mais famoso (vai ser o precursor dos inquéritos sociológicos académicos ao mundo operário), realizado por um senhor que viria a ser conhecido pouco tempo depois em todo o mundo, Karl Marx [3]. O Inquérito foi conduzido pela própria revista e continha 100 perguntas sobre as “condições físicas, intelectuais e morais de vida dos homens e mulheres trabalhadores” e assumia-se como uma batalha científica que faria um levantamento da condição de vida da classe trabalhadora, no caso francesa. Porque, consideravam, os governos e as entidades oficiais faziam inquéritos sobre tudo, agricultura, finanças, comércio, sem se interessarem por saber em que condições viviam os que trabalhavam.

«Quando a rainha Vitória morreu, mesmo no começo do século XX, uma pessoa em cada cinco esperava chegar ao fim desta maneira: um enterro solitário, saído do asilo ou do hospício da assistência pública ou do hospital dos alienados (…). Cerca de um quarto de toda a população vivia na miséria (…)» [4]. Só em Londres, 30 % da população estava sem meios para obter a sua manutenção (abaixo do valor necessário à reprodução biológica, sobrevivência física do trabalhador). Em 1900 na Europa dos Balcãs e na Península Ibérica a esperança média de vida à nascença era de 35 anos [5].

Na Europa as classes sociais não eram, na viragem do século XIX para o século XX, exactamente castas – sem mobilidade social, como no mundo feudal –, mas a sociedade dividia-se claramente em classes: laboriosas, pobres, camponeses, uma minoritária classe média e a aristocracia e a classe alta financeira-industrial: «a maioria dos Europeus podia esperar acabar a vida exactamente na mesma posição social em que começou» [6]. “Filho de sapateiro, sapateiro seria”, com grande probabilidade.

Depois de 1917 e depois das lutas da década de 1960, há uma efectiva redução do tempo de trabalho – e só aí. Depois das greves de 1945-1947 e da morte de 80 milhões de pessoas na II Guerra Mundial, a Europa viveu uma época ímpar de garantia de direitos sociais universais. Uma parte importante dos Europeus experimentou nesses anos segurança no emprego, protecção na saúde e velhice, acesso ao conhecimento. Deixou de ser “filho de sapateiro” – a capacidade de autodeterminação aumentou. Na viragem do século XX para o XXI a mobilidade social era já uma miragem – a proletarização de larga parte das camadas médias marcou a entrada da Europa no novo milénio.

A segurança na acumulação por parte das empresas, expressa no Inquérito de Sua Majestade Britânica, e a luta pela melhoria das condições de vida das classes laboriosas, que tem em Marx o principal pai teórico-político, tem sido a história do Mundo desde a I Guerra Mundial até aos nossos dias.

1. Condition of the Industrial Classes of Foreign Countries, Reports from her majesty’s Diplomatic and consular agents abroad, Houses of the Parliament, 1870, London, Harrison and Sons, 1870 (International Institute for Social History, Archives).
2.«As lágrimas amargas do FMI», In Tudo Menos Economia, Jornal Público, 5 de Maio de 2016.
3.Karl Marx, Workers Inquire, La Revue socialiste, April 20, 1880
4.Peter Laslett, O Mundo que nós Perdemos, Lisboa, Edições Cosmos, 1975, p. 223.
5.Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 14.
6. Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 19. (Tradução Nossa).

*Original publicado no Blogue Aventar

 

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