“Escrever e ser lida torna-me mais perigosa” – entrevista à escritora e ativista indiana Arundhati Roy

Por ocasião do lançamento do livro de ensaios “Coração Rebelde” (ASA) em Portugal, a jornalista Luciana Leiderfarb entrevistou para a Revista do Expresso (edição de 30 de Maio) a escritora e ativista indiana Arundhati Roy (n. 1961), autora de dois romances e vários ensaios. Da discriminação étnica ao sistema de castas, da opressão das mulheres ao “vírus que amplifica injustiças”, do autoritarismo nacionalistas ao desastre capitalista, a autora aborda contradições e conflitos nos seus ensaios que são formas de “intervenção urgente”.  A importância desta entrevista merece a sua ampla divulgação.

Recentemente, denunciou que o Governo do seu país está a usar o coronavírus para inflamar as tensões entre hindus e muçulmanos. Pode explicar?

Antes de começar a crise do coronavírus, o Governo avançou com um “registo nacional dos cidadãos” no estado de Assam. Basicamente, foi uma campanha dirigida aos imigrantes do Bangladesh, que o ministro do Interior costuma chamar de “térmitas”. Quando isto foi feito, 20 milhões de pessoas ficaram de fora do registo, eram ilegais. O Governo esperava que fossem muçulmanos, mas isso não aconteceu — há muita gente sem documentação na Índia. Então promulgou uma nova lei, o Citizenship Amendment Act, para que todas as minorias religiosas oriundas do Bangladesh, Paquistão e Afeganistão tivessem acesso rápido à cidadania. Todas menos os muçulmanos. Em dezembro, saiu a informação de que o registo nacional dos cidadãos seria estendido a toda a Índia e houve protestos em massa. Milhares de pessoas manifestaram-se, e a polícia respondeu esmagando duas universidades muçulmanas. Em fevereiro aconteceu o massacre de muçulmanos no nordeste de Deli e logo a seguir veio a crise do coronavírus. De imediato começaram a surgir boatos nos media de que os muçulmanos eram disseminadores do vírus, de que estavam a empreender uma “corona-jihad”, de que eram bombas humanas. Isto resultou na sua estigmatização e boicote social e económico. Agora, o Governo iniciou a detenção de jovens estudantes, tratados como terroristas, a quem culpam pelos protestos. Tudo a coberto da quarentena.

Disse que o primeiro-ministro Modi está a aproveitar o coronavírus para perpetrar um genocídio muçulmano.

Se olharmos para a linguagem usada pelos media, se olharmos para a estigmatização de toda uma comunidade, acusando-a de ser “disseminadora de doença”, concluímos que estamos perante uma trajetória conceptual de natureza genocida. Tudo começa na linguagem. A desumanização demora muitos anos, mas já está a acontecer — com o registo nacional dos cidadãos, apelidando as pessoas de “térmitas”, construindo centros de detenção. O Governo está a progredir na linguagem, e qualquer historiador dirá que tudo começa por aqui, por um elo humano que é quebrado pela estigmatização e pela divisão, para não falar dos massacres e dos linchamentos.

Mas comparou a situação dos muçulmanos na Índia com a dos judeus na Alemanha de Hitler?

Na verdade, no ensaio “Intimations of an Ending”, o que fiz foi citar Mohan Bhagwat, um dos grandes ideó­logos do Rashtriya Swayamsevak Sangh [RSS], o partido do qual nasceu o Bharatiya Janata Party [BJP] e ao qual Narendra Modi [primeiro-ministro indiano] pertence. Bhagwat diz que os muçulmanos da Índia têm de ser vistos como os judeus da Alemanha, que a Índia deve ser uma nação hindu e que mais ninguém deve ter direito à cidadania. Nesse ensaio, falo de como, nos anos 30, o tifo foi utilizado para estigmatizar os judeus. E o que vemos é o recurso à mesma linguagem.

O que a leva a levantar a voz sobre estes assuntos? O silêncio não é uma opção?

Na Índia, as comunidades são muito rígidas, o que tem a ver com as castas. E eu fui sempre uma outsider, uma estrangeira. Sempre tive dificuldade em compreender a razão por que as coisas eram assim. Ao crescer nesta situação, tendemos automaticamente a ser solidários com quem está a ser perseguido, discriminado ou agredido. Neste momento, há uma atmosfera de bullying na Índia, em especial da parte dos media. Alguns de nós, como eu, com alguma capacidade de falar fora dos canais mainstream, sentem que é cada vez mais importante contar o que se passa. É aterrador ficar calado. Acho que a escolha seria entre a insónia permanente e o falar.

Por ter falado, foi acusada de demonizar o seu país e chamada de propagandista “anti-Índia”. O que diz a isso?

Eles têm estes exércitos de trolls que, protegidos pela web, atacam em massa quem se atreva a fazer a mínima crítica. É incrível a quantidade de malícia e de ódio que destilam. Nenhuma forma de crítica é aceitável, apenas devemos curvar-nos e concordar com tudo.

Isso não está perto do autoritarismo?

É autoritarismo. Se pensar no facto de o primeiro-ministro da Índia, sem consultar nenhum governo regional, ter dado quatro horas para um país com 1300 milhões de pessoas entrar em quarentena, o que é isso senão autoritarismo?

Sentiu-se ou sente-se em perigo?

Qualquer pessoa que se expressa está em perigo. Como sabemos, o perigo pode vir de um ataque público, de uma bala, de um processo judicial ou de um assédio constante. Já tive instaurados vários processos, já tive gangues a entrarem na minha casa e a partirem tudo, e já vi muita gente a ser presa por mostrar oposição. Esse é o lado irónico: se alguém como eu disser alguma coisa, é como se uma montanha caísse sobre ele. Começam a tentar desacreditá-lo, a distorcer as suas palavras. Acontece o tempo todo.

Referiu que o Governo deu quatro horas para o país entrar em quarentena. Falamos da quarentena mais populosa do planeta. Como é que as pessoas viveram essa situação?

Como podemos saber? Estamos todos fechados em casa e os media não contam a verdade. Nos primeiros dias houve um êxodo dos trabalhadores das cidades, milhões de pessoas a caminhar rumo às aldeias, sendo espancadas pela polícia, humilhadas, aspergidas por químicos. Em Bombaim, onde existe a maior favela da Ásia, com quase um milhão de habitantes, o confinamento forçou à compressão física. As classes mais altas conhecem esta situação e vão desconfiar deles quando voltarem ao trabalho. É um tipo de criminalização que os leva a ter pavor de reportar se se sentem mal. Mesmo os jornais referem-se a eles como “suspeitos”, como se tivessem cometido um crime. Há um grande sentimento de raiva, porque há anos que o Governo está a retirar as estruturas de segurança, e os trabalhadores não têm qualquer proteção, vivem com salários diários. Ao mesmo tempo, este é um país onde as pessoas são extremamente obedientes. Acompanhei a marcha dos trabalhadores e vi essa aceitação. As pessoas aceitam a injustiça.

Disse que a quarentena foi uma “experiência química que iluminou coisas escondidas”. Quais?

Nos últimos 15 anos tem havido uma tentativa dos Governos — não só do atual — de inverter o equilíbrio populacional. Porque, na Índia, 80% das pessoas estavam nas aldeias e 20% nas cidades. E, quando este novo mercado livre e global tomou conta do país, houve gente a ser deslocada devido a projetos de grandes infraestruturas, como barragens ou minas. Milhões de pessoas, em especial homens jovens, que perderam as suas terras, foram trabalhar para as cidades e encontraram trabalho sobretudo no sector informal, na construção, em fábricas que alojam dez pessoas num quarto e onde o salário é retido pelo patrão. São a maioria escondida desta Índia ascendente e reluzente de que todos falam. Escondida pelos media e pela literatura, pela poesia e pelo cinema, que jamais falam da pobreza. Nos arredores de Deli abundam os lugares onde a água está envenenada, o ar poluído, onde se percebe a toxicidade em que estas pessoas vivem. Os pobres deste país só existem nas brochuras das ONG. Porém, durante a caminhada, marcharam pelas autoestradas e, de repente, ficaram visíveis.

Foi por isso que quis acompanhar a caminhada?

Estes 20 anos de escrita foram para falar de tudo isto. Seja a questão das barragens, seja a destruição das florestas, seja Caxemira, o que sempre quis foi dizer: esqueceram-se, mas este é o centro da história. E, quando estas pessoas começaram a marchar, foi como um terramoto, porque mesmo que todos soubéssemos que existiam, naquele momento elas mostravam-se, expunham-se para todos verem. Após o anúncio do confinamento, o primeiro-ministro convidou a população a bater panelas nas varandas. Dirigiu-se às classes médias, e o resto das pessoas, a maioria, estava ausente do seu discurso. Um dos trabalhadores disse-me: “Talvez ninguém lhes tenha falado sobre nós.” Nem sequer se trata dos mais pobres — os mais pobres são os que não têm trabalho.

O desemprego na Índia de hoje é o pior dos últimos 45 anos. É irónico que na Índia e nos EUA, dois países contrastantes, a pandemia tenha exposto de forma tão radical os problemas estruturais.

É interessante, porque os mais vulneráveis à covid são aqueles que têm ‘comorbilidades’: o vírus ataca com mais força quem tiver hipertensão, diabetes ou outras doenças. E o mesmo se passa nas sociedades. O vírus expõe fragilidades, amplifica injustiças. Nos EUA, vemos hospitais sobrelotados a lidar com pessoas com as quais antes não se importavam, mas cuja doença pode afetar as classes mais abastadas. Na Índia, não sabemos quase nada, nem sequer o número de casos, porque temos a menor capacidade de testes do mundo. Mas sabemos que o país estava numa crise severa de saúde antes de o vírus chegar. Um milhão de crianças estava a morrer de desidratação e má nutrição. A Índia tem um quarto dos casos mundiais de tuberculose — 1400 pessoas morrem por dia. Tudo isto foi posto em espera, porque os hospitais públicos estão a ser preparados para uma crise de covid-19, que ainda não chegou. Pelo facto de o sistema de saúde ser tão deficiente, está a criar-se uma crise de não covid. As pessoas não estão a ser tratadas por outras doenças infecciosas ou por tuberculose.

O facto de o vírus ter atingido sobretudo as nações mais poderosas desperta-lhe algum comentário?

Basicamente, às figuras autoritárias e nacionalistas junta-se o desastre capitalista. E se antes estávamos a entrar lentamente num estado de vigilância, agora estamos a correr para ele. Os tecnocratas preparam-se para aprofundar as desigualdades, para acelerar as alterações climáticas. Enquanto a quarentena está em vigor, Trump pensa em como pode explorar a Lua.

Donald Trump visitou a Índia mesmo antes da crise pandémica. Que relação tem ele com o primeiro-ministro indiano?

Gostam um do outro. Mas, se há semelhanças entre eles, também existem muitas diferenças. Modi vem do RSS, uma organização fascista fundada em 1925, que sempre defendeu a mudança da Constituição e a Índia como país hindu. Esta ideologia vinga porque tem uma imensa infraestrutura. Enquanto, nos EUA, os media se opõem a Trump, aqui não se vê nada disso. Todas as instituições estão alinhadas com o poder ou em colapso total. Os tribunais, a polícia, tudo está controlado.

Em Portugal, está a ser lançada uma coleção de ensaios sua intitulada “Coração Rebelde” [“My Seditious Heart”]. O que representa escrever ensaios?

Em 1997, “O Deus das Pequenas Coisas” foi publicado e ganhou o Booker Prize. Eu estava na capa das revistas, era o rosto da “nova Índia”, o orgulho do país. Meses mais tarde, o nacionalismo hindu subiu ao poder e levou a cabo uma série de testes nucleares. E houve uma mudança radical na linguagem pública. Senti que se não dissesse nada seria considerada parte desta nova realidade. Então escrevi o primeiro ensaio, “O Fim da Imaginação”. A partir desse momento e até hoje, sou considerada antinacional, anti-Índia, e todo o tipo de epítetos, aos quais já não reajo porque me habituei a eles.

Os ensaios são uma forma de ação?

São uma forma de intervenção urgente. E foram sempre motivados pela observação de um consenso a fechar-se em torno de sectores vulneráveis da sociedade. Tornou-se um modo de escrever uma história alternativa da Índia, diferente da que o poder e os media apresentam como verdadeira. Refiro-me ao preço que as pessoas têm vindo a pagar por este superpoder nuclear e económico. Mas os romances não estão desligados de tudo isto. “O Ministério da Felicidade Suprema” foi escrito enquanto viajava e escrevia não ficção. Tornei-me uma pessoa envolta em imensas camadas. Porém, quando faço ficção, estou a criar um universo, que serve para dizer coisas muito mais complexas e difusas do que a argumentação direta que se requer num ensaio.

Uma vez disse que a ficção vem da alegria. Os ensaios de onde vêm?

Escrever ficção é uma alegria. Levo o meu tempo, não tenho pressa, desfruto do processo. A não ficção vem da raiva, da urgência, da necessidade de dizer alguma coisa naquele momento exato.

Os textos de “Coração Rebelde” foram redigidos entre o final dos anos 90 e 2016. O que mudou no seu país neste período de tempo?

O que mudou, sobretudo, foi a degradação ambiental massiva e a ascensão do nacionalismo hindu, que neste momento é aterrador.

No ‘Fim da Imaginação’ diz que a bomba é a própria Índia hindu.

Os testes nucleares de 1998 deram ao nacionalismo hindu a sua linguagem pública. Depois, em 2002, aconteceu o massacre de Gujarat, que vitimou 2500 muçulmanos. Foi sendo construída esta espécie de islamofobia, que em 2015 alastrou totalmente, gerando os linchamentos, o massacre de Muzaffarnagar e, em fevereiro deste ano, o de Deli. É um país quase irreconhecível.

Porque escolheu a palavra “seditious” [sedicioso, insurgente] para o título do livro?

‘Sedicioso’ é aquele que mina o nacionalismo, a posição de quem não concorda com ele. Há milhares de pessoas na cadeia por sedição, e eu sou constantemente acusada de a praticar. Por outro lado, a palavra tem um sentido emocional. Não se trata de uma dissidência apenas intelectual.

O livro começa com ‘O Doutor e o Santo’, sobre o tema das castas. Porque é um assunto atual?

A casta é provavelmente um dos sistemas mais brutais de organização social alguma vez inventado pelo homem. Haver seres humanos a dizerem que o outro é intocável, invisível, equivale a uma forma de violência difícil de imaginar. Costumo dizer que uma sociedade que pratica a casta percebe bem o que é o distanciamento social. É o que a casta faz. Mesmo hoje, só uma pequeníssima percentagem de pessoas casa fora da casta. Não é só um tipo de organização social, está de acordo com a ordem divina hindu. Isso significa viver numa socie­dade que, por ordem divina, é regida por uma raça superior. Uma das razões por que a sociedade indiana é tão obediente é porque todos vivem submetidos a esta grelha, todos têm alguém a quem obedecer e a quem oprimir. Mas se aceitarmos isto como natural, ou seja, que há uma raça superior, os brâmanes, que distância há entre isso e o fascismo? A ideia de uma raça superior é fascista, então porque é que as pessoas levam tiros quando dizem que esta é uma sociedade fascista?

Acha que o mundo compreende esta questão?

O mundo desconhece isto, porque nem os intelectuais, nem os escritores, nem a esquerda indiana se têm preocupado com o assunto. Eles controlam a narrativa e as histórias que são contadas. Talvez por vir daquele lugar estranho — a minha mãe é cristã —, isto para mim foi sempre algo de chocante e, por isso, algo sobre o qual não posso não escrever.

A vigência do sistema de castas consegue escapar à censura internacional, ao contrário do apartheid. Porquê?

Porque é oriundo do ‘místico Oriente’. As pessoas pensam que isto é só Gandhi e ioga… E o racismo e o apartheid são mais fáceis de ver e de descodificar. A casta não tem uma cor associada, não há qualquer sinal exterior, é preciso perceber o problema por dentro. Por outro lado, a classe alta indiana despende muita energia a fazer de conta que o problema não existe. Mas se vier à Índia no período imediatamente anterior às eleições, o tema principal de que se fala é a casta.

A noção de casta está presente na escola? Faz parte dos manuais?

Está no leite materno. As crianças sabem o que é antes sequer de irem à escola. Costumo dizer que Gandhi teve de ir à África do Sul para compreender a injustiça, mas B. R. Ambedkar [líder dalit que lutou contra a discriminação das castas inferiores] nem sequer foi autorizado a sentar-se numa sala de aulas. Ainda hoje, todos os dias lemos histórias sobre como os estudantes dalit são humilhados na escola ou sobre a frequência com que cometem suicídio por não conseguirem integrar-se no sistema educativo.

Difícil de entender é a razão por que um sistema abolido em 1948 tem uma vigência social tão forte, mesmo tendo havido um Presidente dalit.

É que o sistema não se pode abolir com uma lei. Todos o praticam. Para os dalit, a Constituição é um documento muito importante, o único documento público onde, pela primeira vez, foi dito que todos os homens são iguais e têm os mesmos direitos. Mas isso não quer dizer que os tenham. Houve muitos movimentos anticasta nos anos 80 e 90, mas tudo isso está acabado. Como lhe disse, quantas pessoas no país casam fora da casta? E, se o fizerem, quantos não são assassinados?

Há uma frase sua que gostaria que comentasse: “A democracia não aboliu o sistema de castas, mas modernizou-o.” De que forma?

Temos um sistema de quotas, em que uma percentagem dos empregos públicos, assim como da educação básica e secundária, está reservada aos dalit. Mas só uma porção mínima destes é elegível para tal. O resto das pessoas é deixada no mesmo lugar onde estava. A nossa democracia baseia-se em dar algumas concessões, mantendo tudo o resto igual. Olha-se para quem são os juízes do Supremo Tribunal, os editores dos media, os jornalistas, e não se vê ninguém de entorno dalit.

De acordo com a sua própria experiência, viver fora da casta é viver fora de uma comunidade. Como foi crescer deste modo?

Os meus pais eram divorciados, a minha mãe casara-se com alguém de outra religião e de outra cidade. A comunidade de onde ela vinha era muito rígida e conservadora, e sempre senti que a opinião geral era de desaprovação por ela ter quebrado a regras. As pessoas diziam que eu não ia poder casar-me, e eu pensava: não quero casar-me, de qualquer maneira. Sempre soube que ia ter de construir a minha própria história, a minha própria vida.

O que significa hoje ser mulher na Índia?

Depende da classe social, da casta, do local… não há um significado único. Há desde as mulheres mais poderosas e livres até ao feticídio feminino. Para mim, ser uma mulher ‘sediciosa’ e ser conhecida quer dizer que não me posso simplesmente sentar a descansar, tenho de estar desperta para o que vejo. E tenho de estar consciente de um ataque sempre iminente, se não pela frente, pelas costas ou pelos lados. Quando comecei a escrever ensaios, tive a noção de que abordavam assuntos que não eram sequer considerados como tal, portanto, fui muito questionada e atacada. Ao mesmo tempo, há tantas mulheres incríveis, tantas ativistas, advogadas, intelectuais, uma resistência vibrante. Não me sinto sozinha.

Tem medo?

É assustador, sim. E todos os dias vemos pessoas a serem presas. Procuro a segurança: se escrevo um ensaio sobre Caxemira, é preferível que seja publicado no “The New York Times” ou noutro grande jornal, para ser lido por milhões de pessoas. Isso confere alguma proteção — embora seja também alvo de muita raiva. Escrever e ser lida torna-me mais perigosa. Seria estúpido não ter medo. Há noites em que não se dorme, pensando no que se vai passar. Mas observar e não dizer nada também é duro.

Chegou a ser apedrejada à porta de sua casa…

Sim. Mas o momento mais difícil aconteceu antes de publicar o último romance, quando um ator de Bollywood, que também ocupava um cargo político, disse que eu deveria ser usada como escudo humano. Basta escrever um artigo ou dar uma entrevista para os media indianos pegarem nas minhas palavras e distorcê-las. Acontece constantemente.

No último artigo que escreveu para o “Financial Times”, “The Pandemic Is a Portal”, disse que nada é pior do que o regresso à normalidade. Porquê?

Porque essa normalidade está a conduzir-nos para a destruição do planeta. Veja todo este pânico à volta da covid: os mesmos que entram em pânico são os que acreditam na guerra nuclear, nas armas químicas e biológicas, são os que estão a fazer todo o possível para apressar a destruição do planeta e da espécie humana. Os que rezam por uma vacina ou pela cura da covid são os que negam medicamentos a milhares de pessoas ou que aplicam sanções a alguns países, provocando o sofrimento dos cidadãos comuns. Que tipo de mentalidade é esta? Se esta é a normalidade, não a desejo.

Diz que a pandemia é uma porta entre este mundo e o próximo. O que é que o próximo mundo poderá ser?

A questão é que tanto pode ser melhor como muito pior. E as pessoas que o querem piorar estão a preparar-se, a vigiar, e estão a fazê-lo rapidamente. O confinamento não confinou nenhum desses planos. O que trouxe foi a consciência de que algo de terrível está a acontecer. Podemos fazer alguma coisa para o travar? Vamos dar àqueles que nos representam a permissão de continuar como estamos? Podemos ter uma nova imaginação? Somos animais psicóticos, porque só uma criatura psicótica suja ou destrói o próprio ninho.

Como escritora e pensadora, o que é que um mundo trancado em casa lhe sugere?

No início, senti que era um momento que não se irá repetir. Ouvir os pássaros, ouvir o silêncio à nossa volta obriga ao confronto com nós mesmos. Depois, ao ver a angústia que a doença está a causar em toda a parte e o exercício do poder dos governos sobre as pessoas, tudo me parece aterrador. Os seres humanos vão ser postos perante uma escolha. Vão ter de pensar se querem submeter a sua liberdade, escravizar o espírito da raça humana, ser controlados ao ponto de alguém saber sempre onde estão e com quem falaram, o que comeram ou compraram e ao lado de quem se sentaram. Não sei se consigo viver assim. Acho-o humilhante.

Tem um novo livro de ensaios a sair em setembro, “Azadi — Freedom. Fascism. Fiction”. Que temas aborda?

É uma coleção de textos, o primeiro dos quais sobre tradução literária, ou seja, sobre o facto de os meus romances terem sido escritos em várias línguas em simultâneo — malaiala, inglês, hindi, hindustani, urdu, árabe caxemirense — e sobre como a distribuição das línguas neste país é anterior à divisão política. Há também um ensaio longo sobre a revogação do estatuto especial de Caxemira e outro feito para uma conferência no Trinity College, em Cambridge, chamado “The Graveyard Talks Back”, sobre uma conversa entre dois cemitérios, um de Caxemira e um de Deli. O último de todos é “The Pandemic Is a Portal”.

Está a trabalhar nalgum romance?

Não. Como toda a gente, a minha mente está concentrada em compreender este momento e em vislumbrar o que aí vem.

Já lhe perguntei isto há uns anos: porque é que ficou na Índia?

É o meu lugar, o que conheço, onde tenho os meus amigos. É como perguntar a uma árvore se quer mudar-se para outra floresta. Nunca me senti tão ansiosa, e não só pelo regime, mas pelo apoio que lhe é dado, pela forma como as pessoas se tratam umas às outras. Porém, há tanta beleza neste país.

Parece descrevê-lo como capaz do melhor e do pior. Como capaz de encontrar felicidade na infelicidade.

Há algo de infinito neste lugar. É um continente, não apenas um país. Tem todas estas línguas e religiões e paisagens, tem qualquer coisa de majestoso. E é justamente isso que está a ser atacado. Num dos ensaios, comparo a Índia de hoje com os primeiros tempos do nazismo. O nazismo começou num país e alastrou a sua ideologia nefasta por um continente. A Índia é um continente que encolheu a sua imaginação, defendendo, por exemplo, uma só língua, o que é inacreditável num país com 28 línguas oficiais. É um exercício tremendo de redução.

O que é a felicidade para si?

A felicidade é algo efémero, não se consegue definir, só sentir. Para mim, na maior parte das vezes, é uma frase bonita, um bom livro, a ideia para uma história. Talvez, neste momento, seja a cadela de rua que, mesmo à frente da minha casa, teve sete filhotes. Apenas isso.

 

[Publicado originalmente na Revista do Expresso, edição 2483]

Deixe um comentário