Em tempo de incêndios

É cíclico. Reunidas as condições meteorológicas propícias (temperaturas altas, humidade escassa, ventos acima de 30 km/h) e aí temos de volta os incêndios florestais. Dois anos volvidos sobre as enormes catástrofes de 2017, vagas de lume incontrolável varrem o que restava da martirizada zona centro do país. A Vila de Rei, Sertã, Mação – e ao que mais virá – regressam as paisagens pintadas de negro, o desespero nos rostos, o desânimo das gentes, cansadas da vida e das sucessivas tragédias.

Por estes dias, combate-se o fogo – tarefa prioritária! – e, como de costume, convoca-se a solidariedade com quem está na primeira linha. Entretanto, vão-se medindo os milhares de hectares de áreas ardidas; contabilizam-se os milhares de bombeiros no terreno e lamenta-se a crónica “falta de meios”; apontam-se os “meios aéreos” mobilizados e os que faltaram na hora H; salienta-se o gigantismo da operação de combate e os demasiados dias em que tarda o controlo dos incêndios.

A seu tempo, o credenciado Observatório Técnico Independente (OTI) criado no âmbito da Assembleia da República irá trazer-nos um balanço rigoroso e circunstanciado destes incêndios florestais. Não nos precipitemos, portanto, antecipando as conclusões de quem já mostrou saber o que faz.

No meio do desespero da luta para conter as chamas também se vão ouvindo referências à falta de ordenamento florestal como uma das principais razões para que os incêndios rurais atinjam dimensões incontroláveis. Esta é a resposta que se exige, mas que se arrasta há anos e que interesses poderosos continuam a impedir que seja dada.

PSD: o ordenamento florestal é um gambuzino

Escassos dias antes de deflagrarem os incêndios da zona centro do país, o PSD propôs-se, como “pilar principal” da política para o sector florestal, implementar o que chama de “um plano nacional de ordenamento e produção florestal”.

Em que consiste tal plano?

“Tendo em conta que sensivelmente 1/3 é reposto como a plantação de espécies de crescimento rápido sem necessidade de apoios públicos, propomo-nos apoiar a reflorestação de 30 mil hectares por ano, correspondendo a uma afetação de despesa pública de 75 milhões de euros por ano, no quadro do PDR 2020-2027”.

Rui Rio explicou: o objetivo “é aumentar o investimento na diversificação, proteção e resiliência da floresta, criando mosaicos florestais, que torna a floresta mais diversa e resiliente a incêndios, pragas e doenças e melhor adaptada às alterações climáticas”.

Para começar, o PSD diz querer ordenar o espaço florestal mantendo em percentagem a atual área de eucaliptos. Reconheça-se a coerência do PSD com a “Lei Cristas” de promoção do eucalipto, apesar do seu reconhecido papel nefasto na propagação dos incêndios.

Depois, Rui Rio diz pretender criar “mosaicos florestais”, sem explicar, contudo, como irá fazê-lo em áreas de propriedade pulverizada em centenas de milhares de parcelas. A omissão é significativa, ainda que, provavelmente, Rio quisesse referir-se a “mosaicos rurais”. O homem não pode saber tudo…

Agregação da gestão: a chave

Mas Rui Rio foge da questão crucial, a que não pode escapar nenhum programa político que pretenda realmente mudar o quadro rural do nosso país: para ordenar o espaço rural, é imprescindível promover a gestão agregada das pequenas e pequeníssimas parcelas privadas adjacentes, ganhando escala, garantindo as funções ambientais, assegurando-lhes viabilidade económica, mesmo que se mantenha a propriedade em minifúndio.

Neste contexto, as Zona de Intervenção Florestal (ZIFs) e, sobretudo, as Unidades de Gestão Florestal (estas consagradas na lei, por iniciativa do Bloco de Esquerda) são os únicos instrumentos com capacidade para intervenção no território florestal e para criar novos espaços aptos a serem ordenados. As UGFs são o instrumento que é necessário promover, apoiar e financiar no quadro da nova Política Agrícola Comum (PAC).

Quem o esconde, como Rio, ou quem se limita à reprodução de vagas fórmulas bem-intencionadas nunca mudará nada, no mundo rural.

A concentração capitalista da terra

O governo também já percebeu que é preciso agregar a gestão. Mas aponta claramente no sentido de que tal se faça concentrando a propriedade.

Por um lado, a primeira fase de lançamento das UGFs — logo com uma resposta inicial muito positiva de dezenas de candidaturas — não teve qualquer sequência posterior. Além disto, nunca passou do plano das intenções um ajustamento à lei das UGFs, incorporando ensinamentos saídos da experiência inicial, apesar da sua necessidade ter sido reconhecida pelo próprio governo.

Por outro lado, a recente Proposta de Lei governamental de Emparcelamento Rural não se limita a estimular o emparcelamento por aquisição de pequeníssimas parcelas contíguas ou confinantes, sem viabilidade económica, por excessivamente diminutas. O que até se compreenderia.

O governo foi muito mais longe na sua Proposta de Lei, aprovada pelos votos conjugados de PS e PSD, no último dia dos trabalhos parlamentares. Propõe-se atribuir incentivos financeiros à concentração da propriedade, sem tetos máximos nas áreas cujo emparcelamento é apoiado financeiramente. Ou seja, o governo PS propõe-se financiar com dinheiros públicos a concentração capitalista da terra em grandes propriedades, em novos latifúndios ao serviço das celuloses e da financeirização da floresta.

Vai no mesmo sentido a recente criação da empresa pública FlorestGal, com capacidade de se apropriar e posteriormente arrendar e mais tarde vender – a celuloses, por exemplo… por que não? – parcelas cujos donos as não reclamem durante 15 anos. Neste caso, a Florestgal reúne todas as condições para se constituir como uma plataforma intermédia para a concentração da propriedade rural.

O estatuto da FlorestGal como “empresa pública” até poderá ser atrativo para alguém mais incauto, adepto da propriedade pública, mas esquecido da sua atual natureza. A FlorestGal não vai aumentar a área pública de floresta, mas tão só propiciar o aumento da concentração fundiária dos grandes interesses florestais privados.

Em síntese, em época de incêndios, que ninguém fuja às perguntas essenciais: nas condições concretas da nossa floresta, como ordenar o espaço rural? Como acabar com as imensas manchas contínuas de eucalipto e pinheiro bravo? Como garantir que a floresta cumpre as suas funções ambientais essenciais, nomeadamente de fixação de carbono? O Bloco de Esquerda já respondeu há muito a estas questões.

 

Original em www.esquerda.net

Versão revista pelo autor

 

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