Desconstruir a demagogia sobre as “terras sem dono”

O Governo considera que a suspensão por dez anos do decreto de lei “das terras sem dono” colocará em causa a reforma da floresta. Em conferência de imprensa com a participação do Ministro da Agricultura e do Ministro Adjunto e da Economia, ameaçou com mais dez anos de abandono da floresta e apelou ao PSD para que mudasse de posição, o que parece ter conseguido. Tanto alarido e toda esta mobilização do Governo indica que os compromissos e interesses envolvidos podem ser muito pesados.

Esta posição surge depois da aprovação em Comissão da proposta de lei do Governo para avançar com o sistema de cadastro simplificado. O Bloco votou a favor, e bem. Foram aprovadas na especialidade várias alterações, entre as quais uma do PCP, que também teve os votos favoráveis do BE e do PSD, para a suspensão durante dez anos do decreto lei 15/2019 que entrega as terras não identificadas durante o processo cadastral à Florestgal – Empresa de Gestão e Desenvolvimento Florestal, S. A.

Estas terras incluídas na Florestgal ficariam com registo provisório de aquisição a favor do Estado, podendo ser imediatamente arrendadas ou cedidas para gestão a privados e, ao fim de 15 anos, vendidas a terceiros. O risco de uma operação de concentração de propriedade para entrega de terras aos grandes interesses florestais e das celuloses, por via inicial de arrendamento e, posteriormente, de alienação, torna-se evidente. O objetivo de aumentar a propriedade pública na floresta sairia defraudado.

Esclareça-se que as terras abandonadas, mas cujos proprietários são conhecidos, permaneceriam na mesma situação porque, efetivamente, não são tocadas pelo tal decreto lei cuja suspensão foi aprovada e que apenas aborda as “terras sem dono”.

Politicamente significativa foi a desvalorização que o governo fez da aprovação do cadastro simplificado, em contraste com a sobrevalorização negativa da suspensão do decreto lei que tem tudo para entregar terras aos grandes interesses florestais.

As terras abandonadas com e sem dono conhecido

Há terras abandonadas, mas que se conhecem os donos, e terras cujos donos não se conseguem ou dificilmente se conseguem identificar por razões diversas, nomeadamente devido à emigração para as áreas urbanas ou para fora do país.

As terras abandonadas, quer estejam ou não identificadas, são um problema. É esta situação que importa resolver, sem que os defensores das grandes manchas de eucalipto e pinheiro bravo saiam beneficiados.

Os mecanismos para procurar integrar as terras abandonadas, que ocorrem essencialmente em áreas de minifúndio, foram propostos pelo Bloco. O primeiro foi rejeitado pela direita e PCP, a criação de um Banco Público de Terras que passaria a gerir as terras abandonadas de acordo com o interesse público, mantendo a titularidade das propriedades; o segundo foi aprovado, a criação de Unidades de Gestão Florestal (UGF) com competência para proceder à gestão agregada do minifúndio florestal por via associativa e para integrar as terras abandonadas, com ou sem dono conhecido, mantendo a titularidade, mas com transferência da gestão para a UGF.

Porém, ao Governo não interessa a gestão pública ou associativa da floresta de forma agregada. O interesse principal encontra-se num modelo de concentração fundiária dirigido para os grandes interesses ligados à exploração de um tipo de floresta que trouxe o país para o caos atual.

 

O risco de fogos florestais resulta de problemas estruturais que se resolvem com respostas estratégicas

Sempre houve fogos no verão, quente e seco típico do nosso clima, mas sempre houve gente nas terras capaz de os apagar e de preservar um mosaico agrosilvopastoril com elevada resistência aos fogos. O problema agora reside no despovoamento e no abandono da pequena exploração agrícola, cuja economia se articulava com a floresta numa relação mutualista. Na origem dos fogos há um problema de economia que é necessário resolver.

Um conjunto de medidas que apoiem a fixação de pessoas no interior rural e a pequena agricultura familiar a par de medidas que conduzam à gestão agregada do minifúndio florestal e que potencie o ordenamento e a diversificação, é a única resposta possível para um problema que se vem agravando desde a década de 70, altura em que se começou a sentir o efeito do grande êxodo rural dos anos 60.

 

Querendo, o Governo sabe como resolver o problema da floresta a norte do Tejo e na Serra Algarvia

Já existe legislação que permite promover a gestão agregada das áreas de minifúndio através da constituição de Unidades de Gestão Florestal (UGF). Através deste mecanismo, os produtores podem juntar-se em cooperativa ou associação para em conjunto, e sem perda das suas propriedades, organizarem a gestão e o ordenamento das suas explorações florestais.

Há que investir o máximo possível na concretização desta ferramenta, coisa que o governo não tem tido nas suas prioridades. Não basta abrir um aviso no Fundo Florestal Permanente e esperar que, por geração espontânea, as pessoas, com tradição individualista, se auto-organizem. O Estado tem que atuar, com todos os meios ao seu dispor, como enzima catalisadora deste processo.

Voltar a rever os Planos Regionais de Ordenamento Florestal e expurgá-los da eucaliptização como prioridade de investimento.

Alterar o que resta do PDR2020 para o adaptar às áreas de minifúndio. Estas continuam a ser remetidas para segundo plano ou mesmo excluídas dos apoios. Bem sabemos que o atual PDR foi desenhado pelo PSD/CDS, contudo já lá vão quase quatro anos de Governo PS, já houve mais do que tempo para o alterar.

Aumentar o número de equipas de Sapadores Florestais, melhorar os apoios a estas equipas e pagar-lhe atempadamente. São os Sapadores Florestais os primeiros a chegar aos incêndios e que melhor conhecem o território. Há que os valorizar económica e socialmente.

Ampliar a profissionalização dos bombeiros e dar-lhes formação adequada.

Apoiar as associações de produtores florestais, que vivem com muitas dificuldades, sobretudo depois dos grandes fogos de 2017 e 2018. Estas organizações desempenham um papel fundamental no apoio aos pequenos produtores e às autarquias locais.

E, finalmente, é necessário começar a desenhar o próximo PDR para responder aos problemas concretos em vez de conduzir os recursos financeiros, na base de novos critérios, para os mesmos de sempre. Definir critérios de ordenamento do território, de preservação do ambiente e da biodiversidade como pontos centrais em todas as medidas. Respeitar as especificidades de cada região. Atender à necessidade de adaptação e mitigação das alterações climáticas.

A proposta de reforma da PAC possibilitará a cada país seguir neste caminho. Se não for feito, a responsabilidade será em primeiro lugar dos Governos nacionais.

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