Combates por um novo Chile

O movimento chileno que derrubou 8 ministros e colocou o governo de joelhos não quer pequenas concessões. Quer abolir todo o legado do neoliberalismo e da ditadura de Pinochet. No passado fim de semana realizaram-se as maiores manifestações no Chile desde o regresso da democracia. Em Santiago do Chile, mais de um milhão de pessoas sairam às ruas para protestar contra o governo de direita de Sebastián Piñera. Os protesto estenderam-se por todo o país.

Tendo começado no início deste mês devido à revolta contra o aumento nas tarifas de transporte público, o movimento logo se expandiu para uma série de questões sociais e económicas de longa data relativas a aposentadoria, assistência médica e salários. Mas, como atinge todos os cantos do país, as suas reivindicações aprofundaram-se: os manifestantes passaram a exigir uma nova Constituição e uma reforma muito mais profunda da política do que a que foi alcançada após o regime de Pinochet.

Enquanto as cidades são embaladas ao som de Víctor Jara, compositor executado durante o golpe de 1973, discutimos os protestos no Chile com Isidora Cepeda Beccar (ICB), participante e ativista política residente em Santiago.

Pode-nos contar um pouco sobre como esse movimento de protestos começou?

(ICB)

Tudo começou, em primeiro lugar, porque o governo aumentou as tarifas do transporte público. No Chile, existe um Painel de Peritos em Transporte Público encarregado de definir esses reajustes. Eles argumentaram que esse aumento em particular ocorreu devido ao aumento do preço do petróleo, à variação do índice de preços ao consumidor e outros fatores, como o preço do dólar. Então aumentaram o preço em trinta pesos, o que não é muita coisa, e o governo não esperava a reação com os protestos. Mas os estudantes se organizaram e começaram a incentivar as pessoas a não pagar a passagem. Eram estudantes do ensino médio que, na verdade, têm tarifas especiais, então o aumento não os afetava.

Eles diziam: “Estou fazendo isso pela minha família” ou “estou fazendo isso pela minha mãe”. Eles tentaram abrir as estações de metro para que as pessoas pudessem passar sem pagar. Esses protestos causaram problemas e a polícia interveio usando gás lacrimogéneo. Isso quer dizer que os afetados não eram apenas estudantes — todos na estação ou nos trens foram atingidos pelo gás lacrimogéneo.

Os protestos ganharam corpo por causa disso e, na sexta-feira passada, o caos foi tão grave que a administração do metro decidiu fechar algumas estações. Santiago estava uma confusão. As pessoas que tentavam chegar em casa do trabalho iam a uma estação de metro e ela estava fechada, em seguida iam à próxima estação e ela também estava fechada. Havia muito pouca informação. Em alguns casos, as pessoas começaram a atacar as estações fechadas. Algumas estações foram incendiadas em circunstâncias suspeitas.

Essa foi a desculpa para o governo decretar estado de emergência naquela noite. Mas os protestos tiveram muito apoio popular. Nos últimos meses, houve uma série de declarações de ministros do governo mostrando como estavam por fora da precariedade que afeta muitos chilenos. As famílias da classe trabalhadora geralmente despendem 20% ou mais de seu salário em transporte. Os protestos começaram em áreas de baixa renda, onde as pessoas geralmente precisam viajar duas vezes para chegar no trabalho. As pessoas sentiam que não estavam vivendo para muito mais do que para trabalhar.

Isso significa que os protestos rapidamente se tornaram mais generalizados. As pessoas começaram a articular reivindicações latentes desde o retorno da democracia. Elas falavam sobre o sistema de previdência privada, em que se trabalha a vida toda com um salário decente para no final se encontrar na pobreza. O mesmo acontece com o sistema de saúde. O Estado abandonou o sistema de saúde público. Existem muitos bons médicos, mas pouquíssima infraestrutura. No mês passado, os médicos até se queixaram de falta de remédios. As pessoas precisam esperar três meses por cirurgias básicas. Um relatório recente mostrou que 26.000 pessoas morreram em 2018 devido à longa espera por cuidados médicos.

Essas injustiças são profundamente sentidas e expõem o facto de que o sistema que sucedeu a ditadura no Chile beneficia apenas uma pequena elite. A mídia fala do Chile como um país rico, a joia da América Latina. Mas a maioria dos trabalhadores não vê essa realidade no seu cotidiano. Esse movimento não vai dizer exatamente como mudar a situação — mas está exigindo claramente mudanças.

O Chile tem um presidente de direita desde a eleição de Sebastián Piñera no ano passado. Como reagiu o governo ao movimento?

(ICB)

Tudo começou porque Piñera se recusou a ouvir os estudantes. Mas isso não foi inesperado, geralmente acontecem pequenos protestos sobre medidas governamentais. O governo achava que “mais cedo ou mais tarde eles irão se cansar e seguiremos em frente”. Isso mudou quando o governo decidiu fechar as estações de metro — impactando a vida de todos os trabalhadores — e então reagiu com uma forte repressão aos protestos.

Na mesma sexta-feira em que as estações de metro começaram a queimar outro prédio pegou fogo, de propriedade da empresa de energia Enel. Nós realmente não sabemos quem começou esses incêndios. Eles foram considerados pelo governo como prova de que o movimento foi organizado por grupos terroristas e como um ataque contra, em suas palavras, “todos os cidadãos”. Isso foi um erro — a tentativa de mudar tão rápido o tom da conversa das reivindicações do movimento, que eram bastante populares, para demonizá-lo. As pessoas perceberam como o governo estava sem contacto com a realidade.

No último sábado, o governo colocou exército nas ruas, o que foi outra escalada. Então, naquele domingo, Piñera levou as coisas a um nível acima e disse que estava em “guerra” contra o movimento. Suas palavras exatas foram: “estamos em guerra contra um inimigo poderoso e implacável, que não respeita nada nem ninguém”. Ele não especificou quem era o inimigo, mas deixou aberto a interpretações. Ele estava evitando o problema real — o descontentamento geral — elevando o espectro do caos e de uma ameaça representada por grupos organizados violentos.

Isso foi o ápice para a maioria das pessoas comuns. Não havia justificativa para colocar de lado preocupações que são óbvias para a grande maioria. Ainda é incerto quem exatamente começou os incêndios, mas as pessoas sentiram que o presidente estava criando um monstro que não existia. A realidade é que a raiva e a frustração se acumularam por anos. As pessoas não apoiavam os atos violentos, mas muitos compreendiam.

Colocar o exército nas ruas em resposta a essa ameaça foi significativo. O histórico do exército no Chile não é positivo. Ele nunca esteve em guerra com outro país no período moderno, sempre agiu contra o seu próprio povo. É intimidador ver o exército nas ruas, mas era ainda mais quando esse mesmo exército estava torturando e matando nosso povo por atividades políticas no passado recente. Isso está realmente vivo no imaginário popular.

De repente, havia veículos blindados e tanques nas ruas. Na entrada das estações de metro. Protegendo supermercados como o Walmart. Um toque de recolher foi imposto. Durante esse período, a maioria das pessoas ia para casa, por não querer saber o que aconteceria se o toque de recolher fosse quebrado. Tudo isso contribuiu para a ideia de que estávamos sitiados.

Houve confrontos entre manifestantes, o exército e a polícia. Os números oficiais sugerem que dezoito pessoas foram mortas — mas, se os protestos acontecem à noite, durante o toque de recolher, não sabemos realmente o que se passa. Não há imprensa. A polícia também tem invadido casas e detido ativistas. Mais de 3.000 pessoas foram detidas no total.

No início desta semana, Piñera começou a fazer concessões. O governo reverteu a alta nas tarifas de transporte e ofereceu o que ele chamou de “nova agenda social” com reformas nas aposentadorias, assistência médica e salário mínimo. Mas não foi substancial. No Chile, temos um ditado: “pão para hoje, fome para amanhã”. O salário mínimo agora é de 300.000 pesos [equivalente a 414 dólares] e ele prometeu aumentar 50.000 [69 dólares] — isso não tira ninguém da pobreza. Na quarta-feira, depois do anúncio dessas concessões, tivemos a maior onda de protestos até agora.

Nesse momento, havia um entendimento transversal de que tudo o que havia acontecido até quarta-feira não tinha sido suficiente para fazer o presidente ouvir. Não foi suficiente fazê-lo ceder, mesmo nos elementos básicos do sistema neoliberal e do modelo de desenvolvimento que são, de fato, a causa direta da desigualdade. Na sexta-feira, estima-se que mais de 1,2 milhão de pessoas, apenas em Santiago, foram às ruas. Outras milhares também participaram em outras cidades.

As reivindicações desta manifestação foram diversas, mas seguiram um tema: desde a renúncia do presidente até a proposta de uma nova constituição; de críticas à mídia, a repreensão da polícia e do comportamento dos militares. O movimento estava criticando a forma como o governo lidou com o conflito até agora e sua inflexibilidade.

Como se tem desenvolvido o movimento? Claramente tem crescido em tamanho…

(ICB)

O movimento não tem um líder ou uma organização coordenadora, mas as redes sociais têm tido um papel importante. Você recebe um grupo, uma organização feminista local, por exemplo, postando no Facebook sobre uma reunião numa praça em determinado momento e, em seguida, as informações são compartilhadas pelo bairro. O movimento tem se desenvolvido assim — manifestações nas estações de metro e depois as de maior proporção em diferentes praças. As pessoas se reúnem à medida que o movimento progride. A última semana vimos manifestações em massa.

As pessoas responderam à narrativa do governo sobre o que estava sendo destruído. Elas viram as fotos dos incêndios e dos saques, e se organizaram para proteger seus bairros e estações de metro. Isso também tem unido as pessoas, o que significa que a tática do governo saiu pela culatra. E o movimento se espalhou — a princípio, estava concentrado em Santiago, onde a tarifa do metro aumentou. Mas, no último sábado, houve protestos em Valparaíso, Concepción, Temuco, Punta Arenas, assim como toques de recolher. O movimento se tornou nacional. Houve também os “panelaços”, que começaram em resposta ao toque de recolher, em que as pessoas batem panelas e frigideiras para fora das janelas dos seus apartamentos. Isso mostra como, mesmo quando o movimento é nacional, ele também está presente em todos os bairros. Os “panelaços” se tornaram ainda mais poderosos quando a chamada foi realizada nas mídias sociais para que todos os acompanhassem com uma música específica de Víctor Jara, El Derecho de Vivir en Paz.

Ouvir a música de Víctor Jara tocando nas casas das pessoas em Santiago foi incrível. E mais do que isso. À medida que o movimento crescia, você podia ouvir as pessoas cantando ¡El Pueblo Unido, Jamás Será Vencido! Esse canto transporta para quarenta ou cinquenta anos atrás, para os tempos da Unidad Popular [coligação do governo de Allende], mas as pessoas que estão cantando são estudantes, não veteranos da época.

Essas músicas são simbólicas não apenas em Santiago, mas em toda a esquerda internacional, falando de uma época em que havia grandes esperanças para a esquerda chilena e o governo de Allende. Como a esquerda chilena de hoje respondeu ao movimento?

(ICB)

A esquerda tem sido relutante em falar demais sobre o movimento. O descontentamento que suscitou remonta trinta anos, não apenas à ditadura, mas também à transição para a democracia. A esquerda esteve no poder [através da centro-esquerda dos partidos por la Democracia e depois o Socialista], durante a maior parte dos últimos vinte anos.

Temos que compreender que os socialistas que governavam não eram do partido de Allende. Os presidentes de esquerda que tivemos, Ricardo Lagos, mas também Michelle Bachelet, não mudaram a arquitetura da ditadura. Pinochet criou a estrutura e eles simplesmente tentaram melhorá-la. Eles continuaram no caminho da privatização enquanto, ao mesmo tempo, instituíram programas sociais para ajudar as pessoas que não conseguiam acompanhar o fluxo do mercado. Agora, o estado social é amplamente moldado pelo que você poderia chamar de Esquerda Oficial.

O último governo da Esquerda Oficial, o último de Bachelet, esteve sob a bandeira da Nueva Mayoría, e também incluiu os comunistas. Desde os dias dos protestos estudantis em 2010, o Partido Comunista do Chile produziu uma nova geração de líderes, pessoas como Camila Vallejo e Karol Cariola. Elas são muito boas e havia muitas esperanças para elas. Mas quando estavam no governo, foram muito disciplinadas e apoiaram a linha oficial. Eu acho que isso dificulta com que tenham uma voz forte e crítica. Assim elas são consideradas estando no mesmo “saco” dos outros.

Há também uma “nova” esquerda no Chile, uma aliança de partidos chamada Frente Amplio. Ela inclui a Revolución Democratica, um partido inspirado pelo Podemos, assim como de partidos verdes, humanistas, feministas e assim por diante. Eles se saíram bem nas eleições recentes e têm vinte lugares no parlamento, mas eu diria que eles têm tido dificuldade para ter uma mensagem clara sobre as manifestações. No primeiro sábado, o parlamento votou sobre a redução das tarifas — alguns disseram que participariam das discussões, outros disseram que não participariam até que o exército estivesse nas ruas. Foi bastante ambíguo.

A Frente Amplio representa uma nova geração de políticos, mas eu não diria que eles estão “com o povo”, por assim dizer. Seu discurso defende os interesses populares, mas seus políticos também fazem parte de uma classe média instruída. Eles não construíram uma base de fato. O Partido Comunista, por outro lado, tem uma estrutura muito forte de participação em bairros e sindicatos de baixa renda. Eles são estabelecidos em muitos lugares. A Frente Amplio tem uma estrutura política fraca nas organizações sociais. Mas isso é de se esperar quando é tão novo.

Eu acho que a esquerda em geral não esperava esses protestos e, de certa forma, mostraram o quão longe a esquerda está do povo que ela quer representar. Então agora eles estão esperando e tentando se envolver da melhor maneira possível, mostrar que estão ouvindo. Após as manifestações em massa, há muitos apelos para criar e participar dos cabildos: espaços de participação social de baixo para cima (independentes de partidos políticos), a fim de estruturar as demandas. Muitos deles são chamados independentes, mas o Partido Comunista também estará, tenho certeza, ativando suas bases para incentivar a participação popular nesses cabildos.

Os sindicatos têm sido ativos no apoio aos protestos?

(ICB)

Sim. Há muito tempo no Chile, os sindicatos têm sido sectários, respondendo apenas a suas próprias reivindicações. Com esse movimento de protesto, os vimos responder a demandas populares e amplas. Não são apenas problemas dos mineiros, dos pescadores ou dos trabalhadores dos transportes — são problemas da sociedade.

Na segunda-feira, alguns sindicatos decidiram parar de trabalhar e participar das manifestações. Isso incluiu setores importantes como a da mineração, que chamamos de “salário do país” devido à sua importância para o Chile e para os portos. Mas também foi interessante ver o poder dos trabalhadores do metro. Na primeira sexta-feira, o chefe do sindicato falou sobre como a repressão policial também põe em risco seus trabalhadores nas estações. Isso colocou-os muito alinhados com os setores mais amplos dos protestos.

Os sindicatos convocaram uma greve geral que coincidiu com os protestos em massa na quarta-feira e também apoiaram as manifestações neste fim de semana.

Quais são as perspectivas de sucesso do movimento?

(ICB)

É difícil dizer, porque não há um único porta-voz que articule as exigências do movimento. É muito difuso — então, em primeira instância, a resposta precisa vir do governo. Piñera teve a oportunidade de propor reformas que satisfizessem a revolta e não o fez. Então agora vamos ver para onde vai.

Movimentos sociais como esse podem se inflamar muito rápido. Mas o risco é sempre que não possam queimar por muito tempo. As pessoas precisam voltar ao trabalho, depois de um tempo querem que as coisas voltem ao normal. Eu acho que é um risco que esse movimento tenha tão pouca forma institucional. A meu ver, a menos que as reivindicações sejam levadas adiante pela esquerda, isso poderá resultar em nenhuma mudança real a longo prazo. Porque agora ninguém pode ser específico — por exemplo, não podemos dizer que o movimento queira aumentar o salário mínimo em X% e, se o governo conceder, cantar vitória.

É claro que esse movimento não está apenas abordando esse ou aquele problema. Está levantando questões que vão direto à raiz. Então, acho que precisamos exigir uma nova Constituição. Nossa Constituição hoje é a herança do neoliberalismo no Chile, que remonta a Pinochet e aos Chicago Boys. Para mudar as coisas profundamente, precisamos cortar essas raízes. Precisamos criar novas regras do jogo.

Precisamos de uma Constituição completamente nova, criada por uma assembleia constituinte, com todos os tipos de representantes sociais envolvidos. Isso daria poder real ao povo e encorajaria uma necessária cultura de participação, envolvimento e compromisso social com o espaço político. O presidente, o parlamento, os partidos políticos de hoje não estão representando a voz do povo. Eles não fazem isso há décadas, por que deveriam começar agora?

 

[Publicação original na revista on line Tribune; tradução de Giuliana Almada e publicação em português na Jacobine Brasil em 30.10.2019]

Imagem: Su Hidalgo

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