A “segurança coletiva” e o conflito na Ucrânia

Para além da verdade, o conceito de segurança coletiva pode ser uma das primeiras vítimas do conflito na Ucrânia. Perante a exigência escrita da Federação Russa de que a NATO não seja alargada à Ucrânia e à Geórgia ou a qualquer outra antiga república soviética, a resposta dos EUA e da NATO é que os Estados soberanos têm o direito absoluto de definir a sua política de segurança e alianças de acordo com os seus interesses. Argumenta-se ainda que a segunda alegação da Rússia, de que a NATO deveria voltar atrás no tempo e reduzir a sua adesão àqueles que em tempos não fizeram parte do Pacto de Varsóvia, não só não é realista como significaria aceitar mais uma vez a divisão da Europa em esferas de influência.

O debate sobre este ponto, que já fez correr rios de tinta, provocou uma quantidade de declarações indignadas e todo o tipo de alegações sobre o direito internacional, vai obviamente muito para além da questão específica do conflito ucraniano. Tem vindo a arrastar-se, a nível internacional, desde 2014-2015, com a revolução de EuroMaidan, a subsequente anexação da Crimeia pela Rússia e a guerra civil em Donbass, com a formação das chamadas Repúblicas Populares de Donetsk (DPR) e Luhansk (LPR) e as negociações que terminaram no fracassado acordo de cessar-fogo de Minsk e o subsequente

mediado pela França e Alemanha, o qual a Rússia continua a defender mas a Ucrânia não.

A razão declarada para a atual crise geopolítica – “invulgar”, segundo o Secretário-geral da NATO, antigo Primeiro Ministro norueguês, Jens Stoltenberg, “habitual”, segundo o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky – é o destacamento de 100.000 soldados em território russo e bielorrusso na fronteira ucraniana, que poderiam tornar-se uma força invasora, apesar das repetidas declarações e garantias em contrário, de Putin e Lavrov, que pelo menos convenceram o Secretário-Geral da ONU, Guterres, de acordo com o seu porta-voz. Deve recordar-se que na frente de Donbass, na altura do cessar-fogo, havia 40.000 combatentes de cada lado numa guerra de trincheiras com pouca mobilidade.

Este destacamento russo é a base da acusação de que Putin está a violar o artigo 2.4 da Carta das Nações Unidas, que proíbe os Estados membros de recorrerem à “ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”. Como este juízo de intenções e a pretensão de limitar a política de defesa da Rússia no seu território é combinado com a afirmação da soberania absoluta de qualquer Estado para decidir a sua política de segurança, tal como solicitado para a Ucrânia, é, no mínimo, incoerente. Tanto que obrigou o governo britânico de Boris Johnson a fazer um ato de fé sobre a existência de comandos de sabotagem russos em território ucraniano, a fim de provocar um falso incidente que justificaria a intervenção de Moscovo. Sem apresentar qualquer prova, como foi o caso das “armas de destruição massiva” do Iraque.

Mas o direito absoluto de soberania exigido pela política de segurança da Ucrânia não se aplica, evidentemente, à política de defesa nuclear da Coreia do Norte ou do Irão, para dar dois exemplos extremos de “Estados malfeitores” que são, no entanto, soberanos e membros da ONU. Em nome da “segurança coletiva”, são-lhes impostas sanções e bloqueios. Levada a sério, tal pretensão à soberania absoluta na política de segurança de dois Estados conduziria ao absurdo da insegurança coletiva permanente e está em aberta contradição com todo o desenvolvimento do direito internacional, desde a Paz de Vestefália de 1648 até à Carta das Nações Unidas de 1945.

O conceito de “segurança coletiva”

A filosofia política iluminista, tanto nas suas versões “realista” (Hobbes) como “romântica” (Abbé de Saint-Pierre, Rousseau), justifica a soberania do Estado em nome da segurança coletiva daqueles que cedem parte da sua liberdade e vontade absoluta num contrato social que evita a violência permanente. A paz, a justiça e a segurança são as funções centrais da soberania coletiva delegada ao Estado.

Os efeitos catastróficos da Guerra dos Trinta Anos na Europa do século XVII, em que os Estados absolutos e os seus blocos de aliança defensiva se enfrentaram até ao esgotamento, transferiram para as relações interestatais na Paz de Vestefália a mesma necessidade de colocar limites à soberania absoluta das políticas de segurança das repúblicas, príncipes e monarcas da época, estabelecendo limites ao tratamento das suas populações, mudanças dinásticas, fronteiras e alianças para evitar a rutura hegemónica do regime de segurança coletiva acordado e para gerir o “equilíbrio de poderes”.

Desde então, todo o direito internacional tem girado em torno deste conceito de segurança coletiva, estendendo-se aos territórios conquistados das colónias, ao mar oceânico e a qualquer espaço real ou virtual de projeção da soberania do Estado. A própria ideia de que um Estado possa existir fora do reconhecimento mútuo da “comunidade de Estados”, relega-o à barbárie e priva-o de qualquer segurança face à violência de outros Estados. A pretensão da existência de um estado de “anarquia” de soberanias estatais absolutas é um mito narrativo que tem tão pouco fundamento histórico real como a sobrevivência de indivíduos fora de qualquer tipo de sociedade.

A necessidade de uma “comunidade de estados” baseada na segurança coletiva tem sido afirmada repetidamente, apesar das diferenças de regimes políticos e económicos que possam existir entre estados. A crítica iluminista do “hegemonismo” – que procurava reduzir a “comunidade de Estados” a uma aliança ou bloco de Estados iguais e submeter os restantes Estados a sanções e violência coletiva até à sua assimilação no “direito internacional” da aliança dominante – foi a principal questão do “cosmopolitismo” do Iluminismo que, após o debate entre Anarcharsis Cloots e Immanuel Kant, se inclinou para a legitimidade da pluralidade de Estados, a sua associação voluntária e a segurança coletiva como valores do direito internacional até aos dias de hoje.

Assim surgiu o “Concerto da Europa” após a derrota da hegemonismo napoleónico e o direito humanitário internacional, com as suas regras sobre a guerra e a resolução pacífica de conflitos, a partir das Convenções de Haia de 1899 e 1907. Mas o choque dos blocos imperialistas na Primeira Guerra Mundial, – com a publicação pelos novos governos revolucionários da diplomacia secreta e a corrida aos armamentos que caraterizaram a competição imperialista –, a exclusão e as condições impostas aos Estados que tinham pertencido aos impérios derrotados pesaram tanto que não puderam impedir o fracasso do sistema de segurança coletiva parcial que a Sociedade das Nações tentou implementar face à nova competição imperialista e à ascensão dos regimes nazi-fascistas.

A “segurança coletiva” pode portanto ser entendida como um regime de segurança universal em que todos os Estados cooperam para assegurar a paz e a segurança internacionais contra os Estados que a desafiam pela força.

Quando as Nações Unidas foram criadas, em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, a sua Carta estabeleceu nos Capítulos VII e VIII um regime universal de segurança coletiva gerido exclusivamente pelo Conselho de Segurança, que pode estabelecer sanções, impor bloqueios militares e manter ou restaurar a paz pela força entre os Estados membros. O artigo 52 subordina a existência de “acordos ou agências regionais” relativos à paz e segurança internacionais à sua compatibilidade com os objetivos e princípios da Carta e o artigo 53 especifica que “não aplicarão medidas coercivas sem autorização do Conselho de Segurança”.

A crise atual no sistema de segurança coletiva

É obviamente discutível até que ponto a atual estrutura oligárquica do Conselho de Segurança – com cinco potências nucleares permanentes com poder de veto e 10 Estados sem poder de veto eleitos pela Assembleia Geral da ONU – é capaz de cumprir o mandato da Carta. O equilíbrio desde a sua criação é, no mínimo, discutível, mas não há alternativa de momento, mesmo quando o seu bloqueio através da formação de blocos regionais em torno dos membros permanentes levou à bilateralização de conflitos internacionais entre os EUA, a potência hegemónica após a Segunda Guerra Mundial, e a URSS até 1991 e mais tarde a Federação Russa e a República Popular da China.

O principal problema deste regime de segurança coletiva tem sido desde 1991, após o colapso da URSS e a Primeira Guerra do Golfo, a proclamação da hegemonia unilateral dos EUA – tal como delineada por George W. Bush no seu discurso da Nova Ordem Mundial face às duas câmaras do Congresso, em Setembro de 1990 – e a impossibilidade de a manter fora do atual regime de segurança coletiva, até ao retumbante fracasso da guerra no Afeganistão em 2021. A retirada paulatina dos vários conflitos regionais em que os EUA e os seus aliados ocidentais agiram para impor os seus interesses, deu lugar a uma multipolaridade de equilíbrios de poder das potências regionais que defendem não só os seus próprios interesses particulares como também atuam como representantes. Este tem sido um incentivo fundamental para a indústria de armamento, que não foi deslocalizada tanto nos seus sectores de alta tecnologia como nos de menor valor acrescentado, apesar da desindustrialização de uma grande parte das economias mais desenvolvidas.

Basicamente, quando se repete como argumento a soberania absoluta dos Estados para decidir a sua política de segurança e militar, aquilo as que se está a aludir é à contradição geopolítica do nosso tempo: entre a declaração unilateral de hegemonia dos EUA – da qual a NATO é um mecanismo de subordinação dos interesses da União Europeia e de outros Estados europeus – e a emergência de sistemas regionais de equilíbrios de poder. Esta contradição é a expressão do bloqueio do sistema de segurança coletiva gerido pelo Conselho de Segurança pela competição inter-imperialista entre os EUA (e os seus aliados) e a República Popular da China, como potência global, e a Federação Russa, como potência regional. Mas tal soberanismo absoluto é um mito que cria uma erosão interessada do sistema de segurança coletiva e aumenta o perigo de conflitos num momento de aprofundamento da crise económica, social e geopolítica devido à Grande Recessão de 2007-2008 e à crise da Covid-19.

A Ucrânia e os ucranianos como vítimas

A transição do socialismo irreal para o capitalismo realmente existente na Ucrânia após o colapso da URSS deu lugar a um processo de saque da propriedade estatal por uma série de oligarcas regionais, à desindustrialização e à queda na pobreza para níveis só comparáveis aos da Segunda Guerra Mundial, que a transformaram na prática num “Estado falhado” após a Grande Recessão de 2007-8 e a Crise da Covid-19. Adam Tooze fazum relato detalhado deste colapso. Tal como Volodymyr Ishchenko também já tinha descrito a crise social e política, desde a EuroMaidan, em 2014, que dividiu e confrontou internamente os oligarcas que agem como procuradores das várias potências externas e mergulhou a população desesperada que não pode emigrar (veja-se a curva populacional) na apatia ou na radicalização nacionalista, de um lado ou do outro, sem alternativas.

A única possibilidade de escapar à polarização imposta externamente pelas grandes potências na sua competição inter-imperialista, de desenvolver um projeto de país pluralista que tenha em conta como cidadãos as diferentes comunidades culturais e minorias nacionais, é um estatuto internacional de neutralidade que permita, com a implementação dos Acordos de Minsk II, o desarmamento gradual do país, o fim da guerra civil e reformas constitucionais democráticas que garantam o direito de cidadania e uma independência nacional inclusiva frente aos nacionalismos excludentes. Isto supõe não o rearmamento e a submissão através da dívida externa, que se fazem acompanhar por políticas de austeridade e desigualdade, mas a recuperação das condições mínimas de vida que permitam a participação democrática de toda a população, incluindo um referendo sobre as suas opções de segurança e defesa.

O princípio da soberania absoluta de segurança e militar da Ucrânia tornou-se, na realidade, numa desculpa. Uma desculpa para manter a funcionalidade da NATO e colocá-la no seu contexto regional europeu sob a hegemonia dos EUA, após o seu fracasso no Afeganistão. Tudo isto com base na manutenção da frase da sua declaração de Bucareste de 2008 de que a Ucrânia e a Geórgia “serão membros da NATO”. Nem mesmo o seu Secretário-Geral Stoltenberg – que contribuiu significativamente para esta crise geopolítica com as suas declarações – está disposto a estender a garantia de segurança do artigo 5º do Tratado do Atlântico, com a sua doutrina estratégica de dissuasão nuclear, a um Estado falhado como a Ucrânia.

Face ao mandato universal de desarmamento nuclear, aos incumprimentos do Tratado de Não Proliferação pelas potências nucleares e à entrada em vigor do Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, a funcionalidade declarada e não confessada da NATO (submissão dos interesses europeus à hegemonia dos EUA) baseia-se no guarda-chuva da dissuasão militar nuclear norte-americana. Todos os argumentos do movimento a favor do desarmamento e contra a instalação de mísseis nucleares táticos na Europa das décadas 1960-1970 são ainda hoje válidos face à nova corrida aos armamentos, à modernização dos arsenais “dissuasores” e à denúncia dos tratados de controlo de armamento existentes.

O conflito reginal ucraniano parte da transição falhada para o capitalismo real das oligarquias extrativas e predadoras que emergiram da nomenklatura estalinista, – como as crises na Bielorrússia e no Cazaquistão demonstraram –, exige que se volte a levar a sério o conceito de “segurança coletiva” e a própria ideia da Europa do “Atlântico aos Urais” como um espaço partilhado de paz democrático, social e económico. Porque a alternativa é o bloqueio da transição ecológica, a instabilidade permanente da competição inter-imperialista no continente europeu com a dissuasão nuclear herdada do passado. É deixar o futuro nas mãos de Trump, Johnson, Biden, Putin, Stoltenberg de plantão e aos seus sócios. Isso seria um regresso ao passado.

(*) Gustavo Buster é co-editor do Sin Permiso.

Texto publicado originalmente no Sin Permiso.  Traduzido por António José André para o Esquerda.net

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