A propósito de liberdade de expressão, jornalismo e manifestos que circulam “por aí”

Informação – da sua natureza, propósito e valores

Circula por aí um manifesto em defesa do jornalismo.

Publicou-o, em editorial, o jornal Público, em 23 de Setembro último. Assinou-o o director, Manuel Carvalho.

O manifesto do director do Público, que se quer austero e eloquente, surge em resposta a um manifesto pela liberdade de expressão posto a circular (“por aí”, para citar o director) tempo antes.

O ensejo desse primeiro manifesto fora a despublicação, pelo Público, de um artigo de opinião, publicado pelo mesmo Público, da autoria de um médico, Pedro Girão, de teor fortemente crítico da gestão da pandemia.

No entanto, a partir do segundo parágrafo do seu manifesto, o director do Público concentra-se imediatamente no seu objecto principal, a investigadora Raquel Varela, co-signatária do primeiro manifesto e, em recentes artigos do Público, acusada de ter apresentado a concurso profissional um currículo com “erros”.

Não é propósito, nestas linhas, opinar sobre: o artigo do dr. P. Girão; o manifesto pela liberdade de expressão surgido a propósito da despublicação daquele; o “caso” dos “erros” no currículo de Raquel Varela (ao qual a própria respondeu cabalmente, no Público, ao abrigo do direito de resposta).

Propósito destas linhas é, sim, vistos estes casos do Público, olhar para a natureza, propósito e valor da informação que circula “por aí”.

O director do Público recorda aos leitores que o seu jornal “não é um jornal de parede nem um albergue onde cabem todas as opiniões. Os seus leitores sabem bem qual é a sua natureza, o seu propósito e os seus valores.

Saberão os leitores do Público qual é a natureza, o propósito e os valores do Público?

Talvez saibam. Se sabem, porém, não é pelas informações que o director do Público lhes faculta no seu manifesto.

O director do Público menciona com evidente orgulho o estatuto editorial, o livro de estilo, o provedor do leitor e o Conselho de Leitores do Público. Apresenta o Público como exemplo de jornalismo fundado na deontologia, que opõe à cloaca. Conclui que, no “Público, quem determina o que se publica ou não publica são os seus jornalistas, os seus editores e os seus directores. O juízo das nossas escolhas editoriais não cede a manifestos intimidatórios: obedece apenas à lei, ao bem comum, à nossa consciência e às necessidades e apoio dos nossos leitores.

É proverbial que, quando se ouve invocar o bem comum, a consciência, a deontologia, a moral e mesmo a lei, nunca é mau levar, por precaução, a mão ao bolso, para ver se a carteira ainda lá continua.

Mas tão-pouco se irá discutir de deontologia, bem comum, consciência ou carteirismo.

Discutir-se-ão, sim, brevemente, as tais coisas mais terra a terra: a natureza, propósito e valores do jornal Público e, decerto, outros que assim se revejam.

Por sorte, a verdade é que o problema não é nem filosófico, nem especialmente complicado.

A natureza do Público é esta: é uma publicação propriedade de uma sociedade anónima com fins lucrativos. Uma sociedade anónima detida por uma outra sociedade com fins lucrativos: um grupo económico, conhecido por Sonae. Grupo que tem um capital social considerável, dois mil milhões de euros; e é um dos maiores empregadores do país. O seu capital é detido, como sói, por accionistas. Estes são variados, mas a principal accionista da Sonae é a holding Efanor investimentos, da família Azevedo. Cláudia Azevedo é a presidente da Sonae.

Cláudia Azevedo é também, a talhe de foice, vice-presidente da novel Business Roundtable Portugal, associação empresarial que agrupa as 42 empresas cotadas na bolsa portuguesa. As receitas, somadas, destas empresas totalizam 82 mil milhões de euros, não longe da metade do PIB português.

Na conferência de imprensa que anunciou a fundação desta associação, oportunamente nascida em vésperas de bazuca, Cláudia Azevedo anunciou que, nos próximos anos, 1,1 milhões de portugueses “terão os seus postos de trabalho em risco, porque serão substituídos pela robotização e pela inteligência artificial”. Em língua comum: serão despedidos pelos seus patrões (não por robôs), nomeadamente os reunidos na Roundtable.

O director do Público assevera que o seu jornal se guia pelo “bem comum”. O seu jornal começa, contudo, por guiar-se pelo bem privado da família Azevedo. É de manual que ninguém investe no que não lhe prometa lucro ou proveito privado. O director do Público seria o primeiro a desaprovar quem o fizesse.

Entendamo-nos: o director do Público é livre de pensar que o bem privado da família Azevedo coincide com o bem comum.

Mas, nesse caso, talvez não lhe ficasse (“deontologicamente”?) mal dizê-lo, para governo dos seus leitores.

Em defesa do director do Público, admitir-se-á sem resistência que é isso mesmo que ele faz quando, por exemplo, a 14 de Julho, ao elogiar o “pacote climático” da Comissão Europeia, informativamente aduz que “as 13 medidas propostas pela Comissão vão ter um custo anual de 350 mil milhões de euros [quase o dobro do PIB de Portugal], vão impor mais gastos às famílias em comida ou transportes, vão arrasar milhões de postos de trabalho e vão condenar milhares de empresas à inviabilidade pelos maiores custos do mercado de emissões de carbono.” Para o leitor mais distraído, repete-se que esta frase é parte da defesa e elogio que o director faz do dito pacote.

Se há leitores do Público entre os trabalhadores da refinaria da GALP de Matosinhos (fechada pela família Amorim, parceira da família Azevedo na Roundtable), eles ficarão felizes de saber que o seu despedimento, servindo deveras o bem privado da família Amorim, serve também, consequentemente, o bem comum, tal como explicado e defendido pelo informativo director do Público.

Quando, em 26 de Novembro de 2020, o mesmo director do Público atacou com severidade o chumbo parlamentar da transferência de 476 milhões de euros para o Novo Banco (“granada (…) para alimentar a instabilidade e a perturbação num país à beira de um ataque de nervos”), ele ilustrou, de novo, consequente e firme, aquele seu entendimento do bem comum como decorrência do bem privado.

Sim, sim, tudo reconheceu, todas as malfeitorias, sem hesitação: a duvidosa gestão do Novo Banco, a venda ao desbarato dos seus activos, as mentiras do governo e do Banco de Portugal, os “sérios danos ao interesse nacional”, até.

Mas o que era tudo isso ao lado de um “contrato assinado de livre vontade”?

O bem privado da Lone Star metamorfoseava-se, também ele, pela pena do director do Público, com o desassombro que é seu timbre, no bem comum bem entendido.

Recapitulando: a natureza do jornal Público é ser um investimento da família Azevedo no mercado da imprensa e do jornalismo; e o propósito do jornal Público é, por via de consequência, servir, com proveito, aquele investimento. O leitor confie: para tanto, nomeia-se quem melhor possa e queira servir propósito, investimento e natureza.

Porém, esclarecidas natureza e propósito, que é do sumo aspecto dos “valores”?

Quais são os valores defendidos pelo investimento jornalístico da Sonae?

Talvez a pergunta não seja a melhor.

Talvez a pergunta certa não seja quais, talvez seja: quanto. A resposta torna-se, desde logo, evidente: dois mil milhões. Que, é claro, variam todos os dias, ao sabor da “avaliação de desempenho” dos mercados.

Sem que se menospreze o mérito de encher o peito de consciência, deontologia e bem comum; não seria mais útil aos leitores do Público que o director reformulasse o seu manifesto e pusesse:

O juízo das nossas escolhas editoriais (…)  obedece apenas à lei, ao bem comum, à nossa consciência e às necessidades e apoio dos nossos leitores, sempre que tudo isto não entre em conflito com os interesses económicos, políticos e sociais da família Azevedo e seus compinchas da Roundtable”?

Soará editorialmente menos bem?

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