A jovem que abandonou o filho num contentor ou o outro lado de uma história trágica

A jovem caboverdeana está presa preventivamente e vai continuar porque o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu um habeas corpus apresentado para a sua libertação assinado por três advogados, entre os quais o candidato a bastonário da Ordem dos Advogados, Varela de Matos, que, nas redes sociais, classificou a prisão da mulher como “ilegal”. Os factos são conhecidos, divulgados com maior ou menor pormenor em todos os meios de comunicação social.

Neste preciso momento acabei de assistir a uma reportagem num canal de televisão com os relatos dos dois homens sem-abrigo que descobriram o bebé. Estes relataram inclusivamente que participaram a ocorrência na polícia e que esta terá desvalorizado o alerta. Em vez de se dirigirem ao local e fazerem buscas nos contentores do lixo existentes no local, os polícias displicentemente não deram crédito aos dois homens.

“A mulher de 22 anos que está presa preventivamente em Tires, acusada de homicídio qualificado na forma tentada porque alegadamente abandonou o filho, acabado de nascer, no lixo, na madrugada de 5 de Novembro, podia ter abortado mas não quis, e podia ter salvo o bebé porque voltou ao local e também não o fez.” Este é o relato que vai correndo na comunicação social, nas redes sociais e nos tribunais.

Esta trágica história pode ser contada de outra maneira, por um outro prisma. Uma jovem de 22 anos terá abandonado a sua terra e o seu povo em Cabo Verde para vir estudar para Lisboa. Tirar um curso, construir as bases para uma vida melhor. Mas aqui os seus sonhos rapidamente se transformaram em pesadelos. A Universidade transformou-se numa vida de rua, de sem-abrigo. Viu-se grávida, segundo as notícias. Recusou o aborto que lhe foi sugerido quando fez um teste num centro de apoio para sem abrigo, na Mouraria. Apontam o dedo indignado os mesmos que condenam o aborto e o criminalizam. Nenhuma mulher aborta de ânimo leve, só o faz em último recurso, depois de não encontrar outras soluções. A recusa não isentava os serviços sociais de responsabilidades, antes pelo contrário, a fragilidade obrigava ao reforço de acompanhamento.

Esta jovem terá dado continuidade à gravidez com base numa decisão alimentada pelo mesmo sonho que a trouxe a Portugal. Que a vida iria melhorar, que iria encontrar trabalho, encontrar casa, encontrar os necessários apoios sociais e que a situação no SEF acabaria por ficar regularizada. Mas tudo isso falhou. E esta jovem só se deu conta que o seu sonho falhou no justo momento em que tinha que parir o filho, não dava para esperar mais por uma casa, por um emprego, pela regularização e por apoios sociais, tudo sempre tão burocratizado e inacessível.

Esta jovem sentiu um desespero de morte, o mesmo desespero que leva as pessoas ao suicídio. O que poderia ter morrido naquele caixote do lixo era uma parte de si, uma parte inalienável de si. Esta jovem devia, pois, estar a ser cuidada com carinho e o necessário apoio psicológico como se tratasse, isso sim, de uma tentativa de suicídio.

Nesta minha versão da história os polícias deviam estar a ser acusados de negligência porque desvalorizaram e aparentemente gozaram com a queixa dos sem-abrigo. As equipas de apoio aos sem-abrigo na cidade de Lisboa deviam estar a ser alvo de um inquérito. Afinal sabiam que havia uma jovem grávida sem-abrigo que tinha recusado abortar. Onde estiveram estas equipas de apoio aos sem abrigo durante todo este tempo? E as autoridades de saúde? E os responsáveis pelos apoios sociais?

E a parte da história que aqui conto interroga também a insensibilidade dos tribunais que aplicam a justiça de forma cega. Esta jovem está presa porque, por desespero, deixou uma parte de si num contentor.

Finalmente, importa dizer que quem devia estar naquela cela na cadeia de Tires em vez desta jovem é todo um sistema social que permite situações destas e muitas outras que agora não são notícia, mas já foram.

“O bebé foi depois encontrado, por outro sem-abrigo, desnudo, gelado, com o cordão umbilical irregularmente cortado e coberto de sangue” refere uma das notícias. Os sem-abrigo substituíram-se aos apoios sociais e à polícia. Os serviços de apoio social não deram acompanhamento, a polícia não aceitou a queixa. Desistiram da jovem, desistiram de procurar o bebé, mas os sem-abrigo não.

3 comentários em “A jovem que abandonou o filho num contentor ou o outro lado de uma história trágica”

  1. Desculpe mas nada, mesmo nada justifica o facto de ter deixado um ser humano inocente, este sim inocente, em ser deixado e entregue à morte num ecoponto!!! Essa jovem, apesar de ter todos os problemas que tem, não a impediu de fazer o filho pois não?! Não tinha condições, chegava a um local nem que fosse a um estabelecimento qualquer e pedia ajuda!!! Nem que fosse para entregar a uma instituição!!! Por isso abandonar no lixo um recém nascido não tem razão seja ela qual fôr!!!

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  2. Isso é o que tu achas, portanto colocas-te tu na cabeça de outra pessoa. Eu vejo uma pessoa que cobardemente assassina o filho ou tenta a frio num caixote de lixo. Afinal que valores de sociedade andas a defender????

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