A guerra da Ucrânia: uma guerra imperialista contra os povos da Rússia, da Ucrânia e do mundo

Envolve a guerra da Ucrânia a habitual névoa de propaganda e desinformação criada pelos beligerantes. Nos países imperialistas, nos grandes, mas também nos anexos, como o nosso, adensa essa névoa uma campanha da comunicação social que é tão unânime como é obtusa.

Ora, é importante que os militantes que se batem pelo socialismo e pelos interesses dos trabalhadores de todo o mundo compreendam o que se joga nesta guerra e quais são os interesses envolvidos.

Este artigo propõe-se contribuir para esse esclarecimento.

Como nasceu a Ucrânia moderna?

Ao anunciar a invasão da Ucrânia, em finais de Fevereiro, Putin fez um discurso raivoso em que amaldiçoou Lenin e os bolcheviques por terem criado a Ucrânia.

Com razão. Foi a revolução russa de 1917 que deu à Ucrânia e às outras nações oprimidas do império dos czares, pela primeira vez, o direito a determinarem o seu próprio destino, depois de séculos de subjugação aos impérios russo, austro-húngaro e à Polónia.

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), união de repúblicas livres, foi a expressão dessa política de autodeterminação dos povos promovida pela revolução operária e camponesa.

Contudo, alguns anos mais tarde, a partir de meados dos anos vinte, a contra-revolução burocrática “estalinista” (do nome do seu chefe) tomou o poder na URSS. Expropriou o poder político dos sovietes (“conselhos”) de deputados operários e camponeses e liquidou grande parte do partido bolchevique, a fim de poder consolidar os seus privilégios na distribuição e consumo de bens. Não lhe era ainda possível suprimir a propriedade colectiva dos meios de produção instaurada pela revolução e restaurar o capitalismo.

No entanto, o estalinismo trouxe de volta ideologias reaccionárias e retrógradas. Regressou, nomeadamente, a prática imperial “grã-russa” e, com ela, numerosas formas de opressão nacional.

Apesar disso, é na génese revolucionária e democrática da União Soviética que se encontra a causa última de a própria dissolução da URSS, ainda que sob o açoite da restauração capitalista, se ter podido dar de forma “pacífica”, no final do século passado.

A Ucrânia, a Rússia e a Bielorrússia dissolveram a URSS

Em finais de 1991, Boris Ieltsin, o antecessor de Putin na presidência da Federação Russa, a maior república constituinte da URSS, propôs aos chefes dos partidos comunistas da Bielorrússia e da Ucrânia que os três países denunciassem o Tratado que constituíra a URSS em 1922. Cada um seguiria o seu caminho, formando apenas uma comunidade de nações independentes.

A ideia era tirar o tapete ao presidente da URSS (Gorbachev) e acelerar o processo de contra-revolução capitalista em cada país.

Reunidos na Bielorrússia, os presidentes da Bielorrússia e da Ucrânia aceitaram a proposta de separação.

Nesses anos, grupos saídos do aparelho burocrático estalinista, especialmente da polícia política, procediam à pilhagem sistemática da propriedade estatal, assim na Rússia como na Ucrânia e restantes repúblicas da URSS.

Donde vieram os oligarcas

Para mascarar a brutal expropriação da propriedade social e evitar a revolta popular, o FMI e o Banco Mundial aconselharam um modelo de privatização que foi prontamente aceite: distribuir à população “vouchers” que habilitassem à compra de acções das empresas estatais, assim privatizadas. Era uma farsa inspirada no “capitalismo popular” de Thatcher e Reagan.

A operação-relâmpago, despachada em 1993, nunca teve, note-se, nenhuma forma de legitimação eleitoral.

Os “vouchers” assim distribuídos não valiam nada para os trabalhadores que os receberam. A restauração do capitalismo nestes países caracterizou-se por uma inflação galopante (milhares por cento anuais) e pelo empobrecimento fulminante da população, pelo encerramento de empresas e despedimentos em massa, pela entrada em catadupa de capitais e mercadorias estrangeiras. Nenhum trabalhador tinha uso para pedaços de papel sem valor.

Disso se aproveitaram mafias que então se organizaram a partir dos KGBs de cada república, que compraram em série os vouchers aos trabalhadores – por tuta e meia.

Os chefes dessas mafias tornaram-se, da noite para o dia, e quase de graça, proprietários de empresas e grupos gigantescos. E, dados os recursos que controlavam, sobretudo nos sectores da energia, matérias-primas e mineração (petróleo, gás, etc.), essas empresas tornaram-se de repente muito valiosas no mercado mundial.

“Oligarcas” russos e ucranianos: agentes do saque da Europa de Leste pelo grande capital mundial

Escreve o economista Th. Piketty que a fortuna acumulada pelos novos multimilionários (“oligarcas”) russos entre 2000 e 2010, tal como registada pela revista Forbes, ascendeu a um valor equivalente a entre 30 e 40% do rendimento nacional da Rússia – uma parcela três a quatro vezes superior à correspondente a países como os EUA ou a Alemanha, onde esses anos foram também, no entanto, de aumento brutal dos lucros.

Particularidade adicional: enquanto as fortunas acumuladas pelos grandes capitalistas das velhas potências imperialistas ficaram guardadas nos próprios países – e apenas em parte em paraísos fiscais que são, de qualquer maneira, suas extensões – , no caso dos russos (e ucranianos, etc.) passou-se o contrário.

Pelos cálculos de Piketty, usando fontes oficiais, o valor dos activos financeiros detidos por titulares de um dado país através de paraísos fiscais é significativo, mas limitado. A média mundial é de 10%, variando o valor de país para país. No caso dos EUA, em 2015, estavam em paraísos fiscais 4% dos activos financeiros totais dos capitalistas americanos. No caso da Europa, à volta de 10%. No caso de países neocoloniais, cujas classes proprietárias pertencem, para todos os efeitos, às metrópoles imperialistas e não ao próprio país que governam, os valores eram de 22% (América Latina) e 30% (África). Já no caso da Rússia, a estimativa, por baixo, era de… 50% (sem contar activos imobiliários). Valor comparável só se encontra nas monarquias petrolíferas do Golfo (57%), cujas classes dominantes são senhores feudais, pré-capitalistas, que só se mantêm no poder pela graça do exército e da finança americanos.

Novos imperialismos aspirantes à hegemonia?

É uma evidência que a restauração do capitalismo na Europa de Leste não deu lugar ao desenvolvimento de capitalismos nacionais fortes, ou mesmo de imperialismos concorrentes dos estabelecidos.

Piketty estima que, entre 1993 e 2018, a fuga de capitais russos para o estrangeiro tenha atingido, em estimativa por baixo, cerca de 10% do PIB russo. O espólio do saque da Rússia e dos outros países da Europa de Leste foi abocanhado pelos mercados mundiais de capitais, controlados de Wall Street, Londres e Franqueforte. Alguns oligarcas nominalmente russos – muitos deles com cidadanias alternativas, por causa das coisas – passaram a integrar esses mercados como figuras menores.

Lembrar-se-ão alguns de que, antes da crise de 2007/09, se ouvia e lia com frequência que os multimilionários russos (e chineses) estavam escalando aos lugares cimeiros da hierarquia das fortunas do mundo (conforme o tradicional escrutínio da revista Forbes) e que a sua ascensão iria desafiar a hegemonia americana. A crise de 2007/09 acabou com tais devaneios. Nalguns casos, a crise “limpou” 90% da fortuna dos oligarcas russos. Na prática, transferiu grande parte do espólio do saque da ex-URSS directamente para o grande capital americano e europeu, a verdadeira oligarquia do mundo. Os russos despenharam-se na hierarquia Forbes. Não caíram propriamente na pobreza. Mas aprenderam quem manda.

O “grande capital” russo é um anexo rentista do grande capital americano e europeu.

A rescisão do acordo entre o imperialismo e a direcção do Partido Comunista Chinês

A crise de 2007/09 não assinalou apenas o fim das ilusões dos oligarcas russos – assim confundindo a legião de analistas superficiais que neles descobrira novos aspirantes à “hegemonia” mundial.

A crise marcou, sobretudo, o fim de outro ciclo.

Foi o toque a finados do “compromisso histórico” celebrado nos anos noventa entre o imperialismo americano (com os seus satélites europeus) e a chefia do Partido Comunista Chinês.

Nessa altura, os chefes do PCC, aterrorizados pelo que acontecera aos seus homólogos soviéticos, decidiram acelerar a sua “política de abertura” ao capital. Celebraram um acordo tácito com o imperialismo que inaugurou uma era em que quantidades sem precedentes de capitais americanos, alemães, etc., foram investidos na China. A China transformou-se na “fábrica do mundo”. As metrópoles imperialistas desindustrializaram-se. As suas classes trabalhadoras perderam capacidade de reivindicar e impor aumentos salariais e outras conquistas, sofrendo reveses importantes.

A contrapartida, da parte do imperialismo, foi aceitar não pôr sistematicamente em causa o poder do Partido Comunista Chinês e o controle do Estado chinês sobre os movimentos financeiros e de capitais e as importações para o seu mercado interno.

Porém, como acontece com todas as “expansões” produtoras de super-lucros, também este acordo histórico cedo desaguou numa nova crise financeira e de superprodução. É uma inevitabilidade inerente ao modo de produção capitalista, sobretudo na sua fase imperialista.

Neste caso, a crise, que rebentou em 2007 nos EUA, tomou proporções assustadoras e sem precedentes.

No seu rescaldo, o governo americano e seus associados adoptaram uma política de impressão de quantidades inimagináveis de moeda e de crédito ilimitado dos seus bancos centrais, para tentar suster o colapso. No entanto, “superar” a crise (ainda que provisoriamente) só é possível com nova expansão, novos mercados, novos e maiores super-lucros.

“Viragem para o Pacífico”

Ora, os únicos grandes mercados a que o imperialismo hoje ainda não tem acesso pleno e de onde poderia provir uma nova expansão se eles lhe fossem escancarados sem restrições são os mercados internos de mercadorias, capitais e finança da China. Para os abrir, tornava-se, porém, necessário denunciar o acordo com a direcção do PC chinês – e impor a restauração capitalista plena na China. Só que isso equivale forçosamente a apear do poder a burocracia enquanto grupo social e a provocar convulsões sociais e políticas profundas.

A “viragem para o Pacífico” proclamada por Obama e prosseguida por todas as administrações seguintes representa essa mudança de orientação do imperialismo americano em relação à China.

Em que entra a Rússia nisto? Embora secundariamente, a crise também tornou insustentáveis as dispendiosas “comissões” que o grande capital internacional tem de pagar aos oligarcas e ao Estado russo pelo acesso às abundantes fontes de matérias-primas e recursos da Rússia. Estas “comissões” representam, no fundo, a essência do que as mafias russas são.

O estrangulamento político e militar crescente da Rússia pelo imperialismo americano, mais a trintena dos seus anões europeus, através da UE e da NATO, é a expressão política desta viragem.

Na Ucrânia, só interessa saber quem é o agressor, tudo o resto é “putinismo”?

É tudo o que se ouve e lê no “mundo ocidental”, seja nos meios de comunicação especializados no embrutecimento das massas, seja nos mais esclarecidos.

Mas é pura propaganda, tão embrutecedora como embrutecida.

As guerras coloniais da segunda metade do século XX não foram iniciadas pelas potências coloniais. Foram iniciadas por movimentos de libertação dos países colonizados, não raro a partir de países vizinhos. No entanto, se alguém hoje dissesse a seu propósito que “a única coisa que interessa é saber quem foi o agressor”, alguém faria caso?

Não há paralelos significativos entre as guerras de libertação das colónias e a actual guerra da Ucrânia. Mas o facto, só por si, de ter sido a Rússia a invadir a Ucrânia só esgota a caracterização da guerra para espíritos habituados a pregar uma “moral” que é tanto mais interessada quanto mais se proclama absoluta.

Porque invadiu Putin a Ucrânia? A natureza do putinismo

A ascensão de Putin ao poder foi uma mistura de saga mafiosa e bonapartismo clássico. Num momento chave, Putin alcandorou-se a árbitro dos vários clãs que, na imensa extensão da Rússia, disputavam a rapina do país. Para isso, teve de disciplinar os chefes mafiosos, eliminando os que ousaram desafiar a sua autoridade. Deixou atrás de si um cortejo de “liquidações” e prisões. Teve de segurar com mão de ferro o aparelho de Estado, corrupto e minado pela pilhagem generalizada. Usou, para isso, a estrutura do seu KGB. E, sobretudo, teve de colocar-se acima das classes, proclamando a identidade entre a sua pessoa e a unidade da nação. Fez parte desse desígnio a ressurreição da velha e desacreditada igreja ortodoxa russa, sedenta de benesses e de um lugar dourado à mesa.

No entanto, esta posição tornou Putin muito dependente da complacência do imperialismo americano.  Logo que ascendeu ao poder, Putin sondou a possibilidade de a Rússia aderir, primeiro, à UE e depois, até, à NATO.

Ora a Rússia, pela sua posição de potência nuclear, pela sua extensão e pela sua riqueza em matérias-primas estratégicas, representava um problema bem mais complexo do que a absorção das mafias saídas da restauração do capitalismo nos países mais pequenos da Europa de Leste. Nestes, os pequenos oligarcas locais contentaram-se, com mais ou menos fricções (incluindo guerras, no caso dos Balcãs), em reciclar-se em agentes locais dos imperialismos alemão, britânico, francês e, sobretudo, americano.

O cerco à Rússia e o dilema de Putin

Entretanto, a crise de 2007/09 fez evaporar a complacência do “Ocidente” com a Rússia de Putin (e, mais importantemente, com o PC Chinês). O cerco económico, político e militar ocidental não se deteve na absorção de toda a Europa de Leste para a órbita económica e militar da UE e dos EUA, mediada pelos processos de adesão à UE e à NATO e de bombardeamento da Sérvia. Ampliou-se às antigas repúblicas da URSS, cujas mafias locais, de natureza idêntica à russa, mas sem a extensão do país e as armas nucleares, iam concluindo pela vantagem de negociar o seu papel parasitário directamente com a UE e os EUA.

Neste contexto, a perspectiva de adesão da Ucrânia à NATO e, potencialmente, de estacionamento de armas nucleares americanas a poucas centenas de quilómetros de Moscovo representava a falência definitiva do bonapartismo putinista como única força pretensamente capaz de evitar a humilhação total de uma Rússia abandonada ao saque interno e externo.

Putin arriscava-se a perder o que lhe restava de apoio popular e, perdido este, a base de sustentação do seu lugar de árbitro todo-poderoso entre os clãs. Arriscava a queda. Só lhe restava a fuga em frente.

Esse é o contexto da invasão da Ucrânia, nascida não da força, mas da fraqueza da Rússia, exaurida pela restauração do capitalismo e pelo saque organizado de mafias que alimentam os circuitos de acumulação do capital imperialista internacional.

O exército russo encontrou a resistência do povo ucraniano. Mas face ao exército russo está a NATO: as armas da NATO, o treino da NATO, o dinheiro da NATO e até chefias da NATO. Só a carne para canhão é ucraniana, de um lado, e russa, do outro.

A invasão, prova de aspirações imperialistas hegemónicas da Rússia?

É notório que, com o advento da era imperialista, no início do séc. XX, a ascensão de novas potências com aspirações hegemónicas passou a só ser possível mediante guerras que alterassem os termos da partilha do mundo. Quando as potências aspirantes (Alemanha, Japão, EUA, Itália), cujo poderio económico se aproximara do das velhas potências hegemónicas (Grã-Bretanha e França) ou mesmo o ultrapassara, lançaram o seu desafio, o resultado foram guerras mundiais – com destinos diferentes para os vários envolvidos.

Ora, hoje a economia russa é um pouco maior do que a espanhola, mas menor do que a italiana. É praticamente metade da francesa, 40% da alemã. Representa menos de 10% da economia americana. Números idênticos se aplicam aos orçamentos militares respectivos.

Os génios que vêm na acção desesperada de Putin na Ucrânia a imparável expansão de uma nova potência imperialista hegemónica vivem num mundo de fantasia.

Que consequências tirar?

Não há diferença de natureza entre as mafias oligárquicas russa e ucraniana. Ambas procuram puxar a brasa à sua sardinha num mundo que é controlado pelos poucos milhares de super-milionários de que fala o último relatório da Oxfam (“Lucrar com a dor”), os que lucram com as pandemias e com as vacinas, com as guerras, a venda de armas ofensivas (e de armas defensivas), com o tráfico de drogas (e as clínicas de reabilitação), com a pilhagem e a destruição do mundo e com a miséria dos povos. Regra geral, são americanos, alemães, britânicos, franceses, japoneses, italianos, alguns espanhóis, algum português até.

É claro que, nas circunstâncias, outra coisa não seria de esperar, da mafia russa, senão que invocasse em sua defesa o destino místico da grande mãe russa; e, da mafia ucraniana, que reivindicasse a liberdade da nação ucraniana oprimida.

Na prática, ambas conduzem internamente idênticas campanhas de repressão e exploração dos trabalhadores e povos do país que parasitam (ver artigos juntos).

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia não é uma guerra entre uma potência imperialista e uma sua (neo)-colónia. É uma guerra imperialista, conduzida “subsidiariamente” por mafias parasitárias que representam a decadência profunda do sistema.

O lugar do movimento operário

O interesse dos trabalhadores do mundo inteiro é de se mobilizarem ao lado e em solidariedade com a resistência que, na Rússia, com extrema dificuldade e grande coragem, se manifesta nas manifestações do “Não à guerra!”, nas numerosas recusas de soldados a serem mobilizados para a guerra, na luta pela retirada das tropas russas da Ucrânia. E ao lado, também, dos trabalhadores e sindicalistas ucranianos que, com grandes dificuldades, se batem contra a lei de Zelensky e seus patrões oligarcas que suprime o código laboral, reduzindo a relação contratual entre trabalhadores e patrões a uma relação entre indivíduos iguais, regulada apenas pelo código civil. O regresso ao século XIX.

Nem Putin, nem NATO, nem Biden!

Retirada das tropas russas da Ucrânia!

NATO fora da Europa!

Dissolução da NATO!

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