Ao menos dois brasileiros – o ex-juiz e atual ministro da Justiça Sérgio Moro, e o promotor Deltan Dallagnol – dificilmente se esquecerão do dia 9 de junho de 2019. Naquele domingo, o site The Intercept Brasil, criado pelo jornalista estadunidense Glenn Greenwald, revelou mensagens trocadas entre Moro e Dallagnol, o juiz e o procurador que coordenava a acusação na chamada Operação Lava Jato, através do aplicativo Telegram, O principal alvo da ação de Moro foi o ex-presidente Lula da Silva, preso desde o dia 7 de abril do ano passado.
No Brasil, considera-se que a principal razão da vitória eleitoral do ultradireitista Jair Bolsonaro foi a ausência de Lula, favorito absoluto, cuja participação foi impedida pela Justiça.
As primeiras revelações do The Intercept levantaram dúvidas entre os juristas sobre a atuação de Moro, especialmente a sua proximidade com Dallagnol: ficou claramente demonstrada uma espécie de aliança tácita entre o magistrado e o acusador, o que viola as normas da Justiça brasileira.
Num primeiro momento, os dois disseram não haver nenhuma irregularidade na troca de mensagens. Porém, com o passar das semanas, o The Intercept passou a publicar mais vazamentos – geralmente nas quintas-feiras e domingos – com novas revelações, cada vez mais comprometedoras.
Além disso, na sua página na internet, a publicação digital passou a compartilhar o material obtido com outros meios, como a Rádio Bandeirantes, o diário Folha de São Paulo e a revista semanal Veja, a de maior tiragem no Brasil.
Nenhum dos três meios pode ser considerado favorável a Lula, já que foram grandes defensores da Lava Jato desde o começo, e contribuíram para transformar Moro numa celebridade nacional e construir a imagem de paladino da justiça e combatente da corrupção sem misericórdia.
A segunda reação, tanto de Moro quanto de Dallagnol, foi acusar Greenwald e o The Intercept de ter recebido material confidencial de um hacker.
O jornalista estadunidense, que se tornou famoso por divulgar os arquivos de Edward Snowden, com material secreto de agências norte-americanas de inteligência – trabalho que lhe rendeu o mais importante prémio da sua profissão, o Pulitzer –, nega-se a revelar a sua fonte. Moro e Dallagnol evitam mencionar a hipótese de que essas mensagens, tanto as escritas como as de áudio, tenham sido vazadas por alguma fonte interna da procuradoria ou da 13ª Vara Federal de Curitiba.
A reação seguinte de Moro foi levantar suspeitas sobre a autenticidade do material, e levantar a hipótese de manipulação. Mas os meios que estão associados agora ao The Intercept asseguram que as transcrições são autênticas e que há provas cabais sobre isso. Outro veículo importante, a versão brasileira do diário espanhol El País, examinou parte do material, e assegurou a sua autenticidade a partir de um ponto elementar: checar mensagens dos seus repórteres com integrantes da Lava Jato e as respectivas respostas.
Após mais de um mês desde o primeiro vazamento, o caso Moro-Dallagnol assumiu sérias proporções. A esta altura, não há muito espaço para dúvidas sobre a interferência direta do então juiz no trabalho da acusação. Em várias mensagens, Moro instrui diretamente o promotor sobre como atuar, inclusive indicando quem interrogar para acusar Lula. Os defensores do ex-presidente, que sempre acusaram Moro de ser parcial e de tê-lo condenado sem provas, afirmam agora que tudo o que diziam está comprovado.
Os advogados de Lula pediram ao Supremo Tribunal Federal (STF), que a atuação de Moro seja considerada irregular e ilegal. Com isso, pretendem que o processo seja anulado, e reiniciado nas mãos de outro magistrado, e de outros procuradores.
Em função da crise desatada – e alimentada a cada semana por novas e contundentes revelações – a figura de Sérgio Moro sofreu um severo desgaste. Se quando foi nomeado ministro, a sua imagem de justiceiro e de juiz íntegro serviu como aval ao presidente ultradireitista Jair Bolsonaro, agora se dá um cenário inverso: Moro continua sendo popular, apesar de ter perdido parte substancial de apoio da opinião pública, e agora depende, mais do que nunca, da proteção presidencial.
Há pressão direta dos grandes meios de comunicação para que Moro renuncie. Alguns dos mais respeitados juristas brasileiros e pelo menos dois integrantes do STF denunciam a sua atitude enquanto juiz como “violação da Justiça”.
Por sua vez, nas redes sociais controladas por Carlos, um dos filhos de Bolsonaro, multiplicam-se as mensagens cada vez mais agressivas contra Greenwald. Há desde pedidos para que seja expulso do país até ofensas homofóbicas: o jornalista está casado com David Miranda, deputado federal pelo partido de esquerda PSOL.
A Polícia Federal, que atua sob o comando do Ministério de Justiça, encabeçado precisamente por Moro, nega-se a confirmar ou a desmentir a informação de que teria pedido um informe sobre as contas bancárias de Greenwald. Tampouco confirma ou desmente que exista alguma investigação contra o jornalista.
Greenwald, por sua vez, teve que mudar a sua rotina de forma radical. Enfrenta ameaças violentas contra ele, o seu marido e os dois filhos adoptados pelo casal. Até junho, a sua casa no Rio de Janeiro contava com três câmaras de segurança, e agora tem trinta. Passou a usar um veículo blindado e a andar acompanhado por guarda-costas. Reitera, entretanto, que não deixará de revelar o material do que dispõe. E que há coisas muito mais graves que as já divulgadas.
* Por Eric Nepomuceno; publicado originalmente em Página/12 | tradução de Victor Farinelli em Carta Maior | adaptação e destaques “Via Esquerda”
Artigo relacionado: In Glenn we trust, de Rui Abreu.