(continuação de: 1 – Ecossocialismo e planeamento democrático)
Planeamento democrático
A condição necessária para alcançar esses objetivos [preservação dos equilíbrios ecológicos e construção de um sistema energético alternativo ao das fontes fósseis e poluidoras] é o pleno emprego equitativo (plein-emploi équitable). Essa condição é indispensável não somente para responder às exigências da justiça social, mas também para assegurar o apoio da classe operária, sem o qual o processo de transformação estrutural das forças produtivas não pode ser efetuado. O controle público dos meios de produção e um planeamento democrático são igualmente indispensáveis, isto é, decisões de ordem pública referentes ao investimento e à mudança tecnológica devem ser retiradas das mãos dos bancos e das empresas capitalistas, se quisermos que sirvam ao bem comum da sociedade.
No entanto, não basta colocar as decisões nas mãos dos trabalhadores. Em O Capital, livro III, Marx define o socialismo como uma sociedade na qual “os produtores associados regulam racionalmente as suas trocas (Stoffwechsel) com a natureza”. Entretanto, no primeiro livro de O Capital, deparamos com uma definição mais ampla: o socialismo é concebido como “uma associação de seres humanos (Menschen) livres que trabalham com meios comuns (gemeinschaftlichen) de produção”.[2]
Trata-se de uma conceção muito mais apropriada: a produção e o consumo devem ser organizados racionalmente não somente pelos “produtores”, mas também pelos consumidores e, de fato, pelo conjunto da sociedade, seja a população produtiva ou “não produtiva”: estudantes, jovens, mulheres e homens que se dedicam aos trabalhos domésticos, aposentados etc. Nesse sentido, o conjunto da sociedade será livre para escolher democraticamente as linhas produtivas que serão privilegiadas e o nível de recursos que devem ser investidos na educação, na saúde ou na cultura.[3]
Os próprios preços dos bens de consumo não responderiam mais à lei da oferta e da procura, mas seriam determinados o quanto possível segundo os critérios sociais, políticos e ecológicos. No início, seriam aplicados apenas impostos sobre certos produtos e subvenções para outros, mas idealmente cada vez mais produtos e serviços seriam distribuídos de modo gratuito segundo a vontade dos cidadãos. Longe de ser “despótico” em si, o planeamento democrático é o exercício da liberdade de decisão do conjunto da sociedade. Um exercício necessário para se libertar de “leis económicas” e de “jaulas de ferro” alienantes e reificadas no seio das estruturas capitalistas e burocráticas. O planeamento democrático associado à redução do tempo de trabalho seria um progresso considerável da humanidade em direção ao que Marx chamava de “o reino da liberdade”: o aumento do tempo livre é na realidade uma condição para a participação dos trabalhadores na discussão democrática e na gestão da economia, assim como da sociedade.
Os partidários do livre mercado fazem referência ao fracasso do planeamento soviético para justificar a sua oposição categórica a toda forma económica organizada. Sabemos, sem entrar numa discussão sobre as conquistas e os fracassos do exemplo soviético, que se tratava evidentemente de uma forma de “ditadura sobre as necessidades”, para citar a expressão empregada por György Markus e seus colegas da Escola de Budapeste: um sistema não democrático e autoritário que dava o monopólio das decisões a uma oligarquia restrita de tecnoburocratas. Não foi o planeamento que levou à ditadura. Foi a limitação crescente da democracia no seio do Estado soviético e a instauração de um poder burocrático totalitário, depois da morte de Lenin, que deram lugar a um sistema de planeamento cada vez mais autoritário e não democrático. Se é verdade que o socialismo é definido pelo controle dos processos de produção pelos trabalhadores e a população em geral, a União Soviética sob Stalin e seus sucessores estava muito longe de corresponder a essa definição. O fracasso da URSS ilustra os limites e as contradições de um planeamento burocrático cuja ineficácia e caráter arbitrário são flagrantes: não pode servir de argumento contra a aplicação de um planeamento realmente democrático.[4]
A conceção socialista do planeamento não é nada mais do que a democratização radical da economia: se é certo que as decisões políticas não devem caber a uma pequena elite de dirigentes, por que não aplicar o mesmo princípio às decisões de ordem económica? A questão do equilíbrio entre os mecanismos do mercado e os do planeamento é sem dúvida um problema complexo: durante as primeiras fases da nova sociedade, os mercados ainda ocuparão, certamente, um lugar importante, mas, à medida que progredir a transição para o socialismo, o planeamento tornar-se-á cada vez mais importante por ser oposto à lei do valor de troca.[5] Engels insistia no facto de que uma sociedade socialista terá que adaptar o plano de produção aos meios de produção, dos quais fazem parte especialmente as forças de trabalho. No fim de contas serão os efeitos úteis de diversos objetos de uso, comparados entre si e em relação à quantidade de trabalho necessária a sua produção, que determinarão o plano.[6]
No sistema capitalista o valor de uso é apenas um meio – e frequentemente uma astúcia – subordinado ao valor de troca e à rentabilidade (isso explica porque há tantos produtos na nossa sociedade sem nenhuma utilidade). Na economia socialista planificada a produção dos bens e dos serviços responde somente ao critério do valor de uso, o que leva a consequências no âmbito económico, social e ecológico cuja amplitude é espetacular. Como Joel Kovel observou: O fortalecimento do valor de uso e as reestruturações subsequentes das necessidades tornam-se o parâmetro social da tecnologia, em vez da transformação do tempo em mais-valia e em dinheiro.[7]
O género de sistema de planeamento democrático considerado neste ensaio concerne às principais escolhas económicas e não à administração de restaurantes locais, mercearias, padarias, pequenas lojas, empresas artesanais ou de serviços. Da mesma forma é importante sublinhar que o planeamento não está em contradição com a autogestão dos trabalhadores nas suas unidades de produção. Já que a decisão de transformar, por exemplo, uma fábrica de carros em unidade de produção de autocarros ou de tramways caberia ao conjunto da sociedade, a organização e o funcionamento interno da fábrica seriam geridos democraticamente pelos próprios trabalhadores.
Houve um grande debate sobre o caráter “centralizado” ou “descentralizado” do planeamento, mas o importante continua a ser o controle democrático do plano em todos os níveis, local, regional, nacional, continental – e, assim esperamos, planetário, já que os temas da ecologia, como o aquecimento global, são mundiais e só podem ser tratados nesse nível. Esta proposta poderia ser chamada de “planeamento democrático global”. E, mesmo nesse nível, trata-se de um planeamento que se opõe àquilo que com frequência é descrito como “planeamento central” porque as decisões económicas e sociais não são tomadas por um “centro” qualquer, mas determinadas democraticamente pelas populações envolvidas.
Debate democrático e autogestão
É claro que haveria aí tensões e contradições entre os estabelecimentos autogeridos e as administrações democráticas locais e outros grupos sociais maiores. Os mecanismos de negociação podem ajudar a resolver numerosos conflitos desse género, mas, em última análise, caberia aos maiores grupos envolvidos, e somente se eles forem maioritários, exercerem seu direito de impor as suas opiniões. Para dar um exemplo: uma fábrica autogerida decide descartar os seus resíduos tóxicos num rio. A população de toda uma região está ameaçada por essa poluição. Ela pode, nesse momento, depois de um debate democrático, decidir que a produção dessa unidade deve ser suspensa até que uma solução satisfatória para controlar esses resíduos seja encontrada.
Idealmente, numa sociedade ecossocialista, os próprios trabalhadores da fábrica teriam consciência ecológica suficiente para evitar decisões perigosas para o meio ambiente e para a saúde da população local. No entanto, o fato de introduzir meios que garantam o poder de decisão da população para defender os interesses mais gerais, como no exemplo precedente, não significa que as questões referentes à gestão interna não sejam submetidas aos cidadãos no nível da fábrica, da escola, do bairro, do hospital ou da cidade. O planeamento socialista deve ser fundado no debate democrático e pluralista, em cada nível de decisão. Organizados sob a forma de partidos, de plataformas ou de qualquer outro movimento político, os delegados dos organismos de planeamento são eleitos e as diversas propostas são apresentadas a todos aqueles a quem elas concernem. Dito de outra forma, a democracia representativa deve ser enriquecida – e melhorada – pela democracia direta que permite às pessoas escolher diretamente – ao nível local, nacional e, por último, internacional – entre diferentes propostas.
O conjunto da população interrogar-se-ia então a respeito da gratuidade do transporte público, de um imposto especial pago pelos proprietários de carros para subvencionar o transporte público, da subvenção da energia solar a fim de torná-la competitiva em relação à energia fóssil, da redução da jornada de trabalho para 30 ou 25 horas semanais ou menos, mesmo que isso acarretasse redução da produção. Como Ernest Mandel disse: Os governos, os partidos políticos, os conselhos de planeamento, os cientistas, os tecnocratas ou quem quer que seja podem fazer propostas, apresentar iniciativas e tentar influenciar as pessoas… No entanto, num sistema multipartidário tais propostas nunca serão unânimes: as pessoas farão a sua escolha entre as alternativas coerentes. Assim, o direito e o poder efetivo de tomar decisões deveriam estar nas mãos da maioria dos produtores/ consumidores/ cidadãos e de mais ninguém. Há algo de paternalista ou despótico nessa postura?[8]
Uma questão se coloca: que garantia temos de que as pessoas farão as escolhas certas, as que protegem o meio ambiente, mesmo que o preço a pagar seja mudar uma parte de seus hábitos de consumo? Tal “garantia” não existe, somente a perspetiva razoável de que a racionalidade das decisões democráticas triunfará uma vez abolido o fetichismo dos bens de consumo. É certo que o povo cometerá erros fazendo más escolhas, mas os próprios especialistas não cometem erros?
É impossível conceber a construção de uma nova sociedade sem que a maioria do povo tenha atingido uma grande consciência socialista e ecológica graças às suas lutas, à sua auto-educação e à sua experiência social. Então é razoável estimar que os erros graves – até mesmo as decisões incompatíveis com as necessidades relacionadas com o meio ambiente – serão corrigidos.[9] Em todo caso, podemo-nos perguntar se as alternativas – o mercado impiedoso, uma ditadura ecológica dos “experts” – não são muito mais perigosas que o processo democrático, com todos os seus limites… Certamente, para que o planeamento funcione, são necessários corpos executivos e técnicos que possam fazer funcionar as decisões, mas a autoridade deles seria limitada pelo controle permanente e democrático exercido pelos níveis inferiores, onde existe a autogestação dos trabalhadores no processo de administração democrática. Não podemos esperar, é claro, que a maioria da população empregue a integralidade de seu tempo livre na autogestação ou em reuniões participativas. Como Ernest Mandel observou: A consequência da autogestão não é a supressão da delegação, mas uma combinação entre a tomada de decisão pelos cidadãos e um controle mais estrito dos delegados pelos seus eleitores respectivos.[10]
(continua)
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[1] Artigo publicado em Socialist Register, 2007. Tradução de Sofia Boito. Revisão de Isabel Loureiro. Adaptação e destaques de “Via Esquerda”.
[2] K. Marx. Das Kapital, v.3, Berlin: Dietz Verlag, 1968, p.828 e v.1, p.92. Encontramos uma problemática semelhante no marxismo contemporâneo. Ernest Mandel, por exemplo, defendia um “planeamento central mais democrático sob a autoridade de um congresso nacional constituído por diversos conselhos de trabalhadores cujos membros seriam em grande parte trabalhadores reais.” (E. Mandel. “Economics of transition period”. In: E. Mandel (Org.). 50 years of world revolution. New York: Pathfinder Press, 1971, p.286.) Em escritos mais recentes, ele faz preferencialmente referência aos “produtores e consumidores”. Seremos levados a citar alguns trechos dos escritos de Ernest Mandel, pois ele é o mais esclarecido teórico socialista do planeamento democrático. Entretanto, devemos mencionar que ele não havia incluído o tema da ecologia como um aspeto central de seus argumentos referentes à economia.
[3] Ernest Mandel definia o planeamento da seguinte maneira: “Uma economia planificada significa (…) para os recursos relativamente raros na sociedade, que eles não sejam repartidos cegamente (sem que o produtor consumidor se dê conta) pela ação da lei do valor, mas que eles sejam conscientemente atribuídos segundo as prioridades estabelecidas previamente. Em uma economia de transição, onde a economia socialista reina, o conjunto de trabalhadores determina democraticamente a escolha dessas prioridades.” (E. Mandel, op. cit., p.282).
[4] “Do ponto de vista da massa salarial, os sacrifícios impostos pela burocracia arbitrária não são nem mais nem menos ‘aceitáveis’ do que aqueles que são impostos pelos mecanismos do mercado. Os dois tipos de sacrifícios são apenas duas formas diferentes de alienação” (ibidem, p.285).
[5] No seu notável livro lançado recentemente sobre o socialismo, o economista marxista argentino Claudio Katz sublinha que o planeamento democrático supervisionado a partir dos níveis locais pela maioria da população “difere conforme se trata de uma centralização absoluta, de uma estatização absoluta, de um comunismo de guerra ou de uma economia planificada. A supremacia do planeamento sobre o mercado é necessária para a transição, mas não seria necessário suprimir as variáveis do mercado. A associação das duas instâncias deveria ser adaptada a cada situação e a cada país.” Entretanto, “o objetivo do processo socialista não é manter um equilíbrio imobilizado entre o plano e o mercado, mas promover uma supressão progressiva do lugar do mercado.” (C. Katz. El porvenir del Socialismo. Buenos Aires: Herramienta/Imago Mundi, 2004, p.47-8).
[6] F. Engels. Anti-Dühring, op. cit., p.349.
[7] J. Kovel. The enemy of nature, op. cit., p.215.
[8] E. Mandel. Power and money. London: Verso, 1991, p.209
[9] Mandel observou: “Nós não pensamos que a ‘maioria tem sempre razão’ (…) Todo mundo comete erros. Isso é verdade para a maioria dos cidadãos, para a maioria dos produtores e para a maioria dos consumidores. No entanto, haverá uma diferença essencial entre eles e seus predecessores. Em todo sistema em que o poder é desigual (…) aqueles que tomam más decisões sobre a atribuição de recursos são raramente aqueles que pagam as consequências de seus erros (…) Considerando o facto de que exista uma real democracia política, escolhas culturais reais e informação, é difícil acreditar que a maioria prefira ver os seus bosques desaparecerem (…) ou os seus hospitais com poucos funcionários, em vez de corrigir os erros de atribuição.” (E. Mandel, In defense of socialist planning, New Left Review, n.1, v.159, 1986, p.31).
[10] E. Mandel. Power and money, op. cit., p.204.